Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Quarta-feira, 29 de Junho de 2005
O Senhor Engenheiro
Podem ter acesso à minha Homepage (ou Página pessoal ou Webpage) a partir deste blog.
Quem já a visitou, pode ter lido que este vosso amigo licenciou-se em Engenharia Química, tendo feito a última cadeira em Outubro de 1972 mas, só depois de efectuado um estágio obrigatório de três meses é que me foi concedida a licenciatura. A certidão respectiva tem data de oito de Março de 1973.
E pensam que depois de ter o canudo – efectivamente tenho o diploma à moda antiga, feito à mão, escrito com letra gótica (?), em latim, sobre pergaminho e com um medalhão em prata, pendente – passei a ter o direito de usar o título de Engenheiro?
Não!
Para isso é preciso estar inscrito na Ordem dos Engenheiros.
Conheço o caso de um velho professor catedrático que, atingida a idade própria, salvo erro os setenta anos, jubilou.
Era membro da Ordem mas, em face da nova situação, escreveu para lá a dizer que não pretendia continuar como associado.
Pois não querem saber que, alguns dias depois, recebe uma carta a dizer que o seu pedido de demissão tinha sido registado, mas lembrando-lhe que a partir desse momento não poderia usar mais o título profissional de Engenheiro?
Como pessoalmente nunca tive interesse nenhum em inscrever-me nessa associação, nunca tive direito a usar o título profissional.
Na prática, todavia, todos os licenciados são chamados de “Senhor Engenheiro”.
E não só. Os Engenheiros Técnicos também. E muita mais gente.
É de todos sabido a apetência que há por uma grande parte dos nossos compatriotas em ser chamado por Senhor Engenheiro ou Senhor Doutor (ou no feminino, claro está).
Na empresa onde trabalho, nomeadamente os fornecedores, tratam quasi toda a gente por Engenheiro. Quer o fossem, quer o não fossem. E não é que, até hoje, só conheci uma pessoa que, perante tal “promoção”, dizia:
- Eu não sou engenheiro. Gostava muito de o ser, mas não sou, de facto – e soltava uma sonora gargalhada.
Todos os outros calam-se muito caladinhos e lá vem as cartas, os faxes, os e-mails, os telefonemas dirigidos ao Senhor Engenheiro Malaquias ou Barnabé que, muitas vezes nem um curso técnico completo tem.
Acho que isto revela bem a importância de se ter um título em Portugal.
Muitas vezes, quando telefono para determinado destino, depois de dizer o meu nome (Castilho Dias, nunca usando o título) a menina pergunta:
- O senhor é Engenheiro?
Naturalmente que eu respondo afirmativamente.
Pois nem imaginam como as deferências se multiplicam. E agora já não tanto, mas há vinte ou trinta anos, até metia dó.
Mas quero dizer-vos que tenho muito orgulho em ter feito o meu curso. Deu-me muita canseira e muito trabalho.
E até sabe bem ser tratado pelo título. Mas nunca fiz questão em ser chamado como tal. Quem quiser chama, quem não quiser não chama.
Bom!
Vinha isto a propósito de eu não poder usar oficialmente o título profissional.
Acontece que, por razões do interesse da empresa onde presto os meus serviços, pediram-me recentemente que me inscrevesse na Ordem.
Respondi que se a empresa tinha vantagem nisso eu estava disponível a inscrever-me, desde que a entidade patronal tratasse de tudo e tudo pagasse.
E assim foi feito.
Já recebi uma carta a dizer qual o meu número de membro da Ordem.
Portanto, minhas amigas e meus amigos, a partir deste momento muito respeitinho pelo Senhor Engenheiro.
Sábado, 25 de Junho de 2005
Sequestro
Outono de 1982. Viviam-se dias agradáveis, soalheiros.
Eu trabalhava numa empresa sita em Sobrado, no concelho de Valongo, desde Abril de 1979.
Fora criada em 1949, curiosamente o ano do meu nascimento.
Em 1980 foi comprada por um dos maiores grupos empresariais privados portugueses mas, ao contrário das expectativas de todos os que nela trabalhavam, continuou financeiramente debilitada. Mais rigorosamente, a situação piorou. Cerca de dois anos depois os ordenados já eram pagos aos soluços.
Pressentia-se que o fim estava próximo.
Uma das panaceias que a administração usou para tentar evitar o que já era inexorável foi determinar que no chamado sector têxtil, onde quasi só trabalhavam mulheres em dois turnos, se fizesse uma alteração.
Os dois grupos de funcionárias laboravam alternadamente, isto é, um deles funcionava das seis às catorze, o outro das catorze às vinte e duas. E assim durante uma semana. Passado o fim-de-semana, as operárias trocavam de turno. As que trabalhavam de manhã passavam para a tarde e vice-versa.
Este sistema não tinha nenhuma vantagem especial para a empresa mas, como propiciava, de acordo com o contrato colectivo de trabalho, um suplemento salarial de vinte por cento, agradava às mulheres.
Ora a decisão da administração foi no sentido de acabar com essa alternância e, consequentemente, cessava o tal acréscimo no rendimento.
É bom de ver que as movimentações começaram logo que a mudança foi anunciada para vigorar a partir de determinada segunda-feira.
Dirigentes e delegados sindicais andavam numa roda-viva a travar mais uma luta contra a exploração do patronato.
Um plenário foi convocado para as duas horas da tarde e assim, aproveitando a mudança de turno, estariam lá as mulheres todas que eram umas centenas.
Antes de ir dar uma espreitadela ao local da reunião eu, que na altura também era chefe de uma parte das colaboradoras abrangidas pela nova regra, passei pelos salões onde as máquinas estavam quasi todas paradas por ausência das operadoras.
E reparei que uma tal Margarida, jovem, anafada, loira de cabelo curto, mal-educada, regateira e delegada sindical, por toda a gente conhecida por Mamuda, estava junto de uma operária. Achei a situação estranha e aproximei-me.
Constatei que a operadora estava a chorar devido às ameaças que a Mamuda lhe fazia por ela não ir ao plenário e se manter com a máquina a trabalhar.
Irritado com a situação, e depois de ter feito algumas perguntas para me certificar que não estava a interpretar mal o que acontecia, disse para a loira:
- Se esta sua colega pretende continuar a trabalhar, a senhora não tem o direito de a estar a importunar. Portanto, saia já daqui!
A delegada sindical ainda ripostou (pareceu-me ouvir qualquer coisa como fascista) mas repeti a ordem em tom mais altissonante e ela lá foi devagarinho para outro lado. Claro que fui atrás dela para evitar que repetisse a cena com mais duas ou três colegas que tinham resolvido continuar a trabalhar.
Daqui a pouco já vão perceber esta referência especial à Mamuda.·
E chegamos à tal segunda-feira em que a nova regra iria começar a funcionar.
Como se previam problemas, o director fabril, Eng. Veiga, eu, os meus colegas Jacinto (de que já falei algumas vezes nos meus textos, embora na qualidade de amigo) e Lopes, bem como o Miranda, chefe do Pessoal, decidimos aparecer nas instalações fabris antes das seis.
E as mulheres compareceram ao trabalho. Mas a maioria eram do turno que deveria vir só de tarde. As que acataram a nova regra eram poucas.
Perante a situação, o director decidiu deixar que as coisas continuassem assim e tentar falar com alguém da administração, mais tarde, para combinar a forma de combater a falta de cumprimento do estipulado. Refira-se que a sede administrativa ficava no Porto e não em Sobrado.
Por volta das dez da manhã já o Eng. Veiga tinha tentado contactar alguns administradores, mas sem sucesso.
E então, algumas operárias, lideradas pela Guida Mamuda, deixaram o local de trabalho, entraram na zona de serviços, subiram as escadas de acesso ao gabinete do director e foram falar com ele no sentido de ser revogada a directiva.
Claro que o Veiga não tinha poderes para tal e disse isso às empregadas. Estas, melhor dizendo, a Mamuda, afirmou então que não iriam para o trabalho sem a anulação da ordem.
Saíram do gabinete e postaram-se na escadaria que ficava uns trinta metros adiante.
Quando, passados alguns minutos o director veio indagar qual a causa do barulho que continuava a ouvir, mas ainda mais ampliado, deparou já com umas dezenas de funcionárias às quais se dirigiu.
Foi recebido com apupos e palavras de ordem (como é habitual nestes casos) e com a intimação de voltar para o gabinete e só sair de lá quando o problema estivesse resolvido.
O director fabril telefonou então para o Porto a informar que estava sequestrado e tinha de falar com algum administrador. Mas de qualquer deles, nem rasto…
Depois ligou para o Miranda e para os três chefes de produção (eu, o Jacinto e o Lopes) a contar o que se passara.
E fomo-nos mantendo em contacto telefónico. Administradores, nada! E o grupo de mulheres liderado pela fogosa peituda continuava na escadaria.
Antes de ir almoçar, resolvi ir ver como estava o engenheiro director. Passei pelo grupo de mulheres, falei com o meu chefe, saí e, quando ia atravessar o grupo contestatário, a Mamuda avançou para mim, empurrou o seu bem almofadado peito contra o meu e gritou:
- Não passa! Não passa!
E logo as outras num afinado coro:
- Não passa! Não passa!
E regressei ao gabinete donde tinha acabado de sair.
Estava sequestrado.
Não fiquei atrapalhado. Numa primeira fase até achei certa graça. Sempre gostei de situações incomuns.
Telefonamos aos colegas para não irem lá acima sob pena de também ficarem retidos.
E o dia foi passando. Cigarros, estratégias, conversa, tácticas, telefonemas. Nada de comida nem de administradores. Só autorização para ir fazer xixi.
Telefonei à minha mulher que estava grávida de oito meses. Contei-lhe o que se passava.
Ficou aflita, como seria normal, mas fui-lhe dizendo que não havia perigo nenhum e que mais isto e mais aquilo; não queria que se incomodasse excessivamente.
A certa altura da tarde, entrou o Miranda. Não aguentava sem nos vir ver e lá ficou detido.
Três!
Com o passar das horas, a fome e as palavras de ordem que eram gritadas de vez em quando, as preocupações foram aumentando.
E se aquela horda entrasse por ali dentro e nos agredisse? Cheguei a pensar que ainda seria defenestrado como o Miguel de Vasconcelos.
Nenhum administrador apareceu na sede nesse dia. Estávamos furiosos com eles. A decisão fora de sua responsabilidade e agora deixavam o seu representante na fábrica sem protecção nenhuma. Ainda chamamos a GNR mas, como de costume, não adiantou nada.
A tarde aproximava-se do fim.
Era preciso fazer qualquer coisa.
E o Veiga foi chamar uma delegação de duas ou três trabalhadoras para vir falar com ele. Vieram umas trinta para dentro do gabinete. Tive algum medo do que poderia acontecer.
Já não me lembro do que foi dito. Lembro-me que, por volta das dez da noite, se chegou a um acordo. Acho que isso aconteceu porque as mulheres acabaram por perceber que o Veiga não tinha poderes para tomar a decisão que pretendiam e porque elas próprias se queriam ir embora.
E assim acabou o sequestro.
Telefonei imediatamente para casa. Aliás, durante todo esse período, várias vezes o fiz para sossegar a mulher e outros familiares que, entretanto, já tinham sabido da minha desconfortável situação.
Para vos falar francamente, acho que fiquei preso só porque a Guida Mamuda se quis vingar da minha atitude no salão de máquinas e que intencionalmente narrei mais acima.
Nos dias seguintes, progressivamente, as trabalhadoras começaram a cumprir a determinação da administração que na terça-feira de manhã, finalmente, deu sinal de si.
Os salários continuaram a chegar cada vez mais atrasados. Penso que essa foi umas das razões para desmotivar a luta das empregadas. Começaram a perceber que aquela empresa que dava sustento a tanta família (em muitos casos a famílias inteiras; pai, mãe e filhos) estava moribunda.
Lembro-me que um dia uma jovem operária me disse:
- Sabe? Nós nascemos para ser pobres.
Menos de um mês depois nasceu o meu filho.
Cerca de mês e meio mais tarde mudei para outra empresa.
Ainda nela trabalho e, ironia das ironias, foi também comprada pelo mesmo grupo empresarial. Mas desta vez a coisa está a correr bem! Uff…
Em Janeiro de 1983 as máquinas da CIFA – Companhia Industrial de Fibras Artificiais, SA, pararam. Para sempre.
Terça-feira, 21 de Junho de 2005
O Pérola Negra
O Pérola Negra é uma casa de diversão nocturna do Porto.
Diversão para homens, entenda-se.
Casa de alterne, de ataque e de actuações ao vivo.
Foi fundada nos anos sessenta, situando-se desde sempre na rua de Gonçalo Cristóvão, muito pertinho do cruzamento com a rua de Camões.
Fui lá muitas vezes. Ou só ou com amigos. Geralmente beber uma cervejola e ver o “show”. Pouco depois da revolução, especializou-se, durante vários anos, em espectáculos pornográficos em carne e osso. Mais carne do que osso, claro!
O fundador e proprietário, já falecido, fartou-se de fazer dinheiro.
Até de Lisboa vinha malta para ver como era para depois contar como foi.
Situemo-nos agora nos inícios dos anos oitenta.
Eu, o meu amigo Jacinto, de que já falei, nomeadamente aquando da estadia em Paris, e um outro grande amigalhaço, o Paulo, decidimos ir, com as respectivas consortes, fazer uma mariscada a Matosinhos, numa noite quente de verão.
Depois de bem comidos e bem bebidos, e recordo que naquele tempo ainda a GNR não usava os famosos balões para medir o nível de alcoolémia no sangue dos condutores, demos um pequeno passeio a pé junto ao mar.
Refrescava e ajudava a fazer a digestão.
Algum tempo depois resolvemos voltar para os carros.
- E que vamos fazer agora?
O habitual seria irmos para casa de um dos casais e tagarelar até às tantas.
Mas este vosso humilde escriba teve uma ideia brilhante:
- E se fôssemos ao Pérola Negra?
- Grande ideia! – disse logo o Jacinto que era ainda mais louco do que eu.
O Paulo, menos dado a estas coisas da vida nocturna, ficou calado.
E as mulheres, depois de olharem umas para as outras responderam:
- Que horror! E se alguém nos vê? Pensem noutra coisa.
- E pode haver zaragata.
Mas não pude deixar de reparar que tinham um brilhozinho nos olhos, como diz a canção do Sérgio Godinho.
- Olhem que é uma oportunidade única. Vamos os seis e garanto que ninguém se mete connosco – disse eu.
- Claro! E indo com homens como nós ninguém vos vai importunar nem fazer propostas indecentes – apoiou o Jacinto.
Não foram precisos muitos mais argumentos.
A curiosidade de ver como era uma casa de meninas por dentro, a funcionar, e ainda por cima um “show” porno ao vivo, venceu todos os “mas”.
- Vamos lá! – disse a minha mulher.
- Então vamos! – disseram as outras.
O Paulo venceu o retraimento inicial.
E lá nos dirigimos ao famoso Pérola Negra.
O porteiro, velhote calmeirão, seguramente um reformado tendo ali um complemento monetário, quando nos viu e ouviu perguntar quanto custava a entrada para seis pessoas, fez uma cara de admiração. Estava habituado a ver as mulheres a entrar sozinhas e sair acompanhadas, mas entrarem acompanhadas era coisa rara, certamente.
Feito o pagamento que, como é normal nestas coisas, dava direito a algum consumo, descemos a larga escadaria e entramos na grande e mal iluminada sala.
A música gravada soava baixo, sem ferir os ouvidos.
Fomos recebidos com toda a deferência.
Escolhemos uma larga mesa não muito perto do “tableau” e sentamo-nos em confortáveis “maples”.
Vieram as bebidas e, conforme os olhos se iam adaptando ao escuro, as nossas acompanhantes puderam apreciar um prostíbulo em movimento.
As meretrizes estrategicamente dispersas pela sala, quasi todas sentadas, ou sozinhas ou aos pares. Os clientes mais afoitos faziam um chamamento discreto ou íam sentar-se junto da escolhida. Aos mais tímidos ou inexperientes era perguntado pelos empregados de mesa se pretendiam a companhia de uma menina. Outros chamavam os serventes e pediam um conselho sobre quais as raparigas com melhor desempenho. Muitas vezes, os funcionários levavam uma "dama" até à mesa de um cavalheiro para o entusiasmar. Mas a maioria não tinha nem queria companhia.
Os homens mais velhos eram alvo de mais atenções que os rapazotes. Por razões óbvias.
De quando em quando ouvia-se o pum do abrir de uma garrafa de champanhe ou de um espumante mais rasca.
De tempos a tempos saía um parzinho. Depois a menina voltava sozinha.
Tudo sob o olhar atento do patrão.
À uma da manhã começou o espectáculo, com um casal de dinamarqueses, ou lá o que eram, a ter relações sexuais para português ver.
Não deixo de admirar a descontracção dos homens que tem de fazer isto, em frente a um numeroso grupo de mirones, duas vezes por noite e sem fracassarem. E ainda não tinha sido sintetizado o Viagra!
Mas não era o que se passava no palco que despertava a curiosidade das nossas mulheres. Era o comportamento das meninas e dos clientes.
E a mim e aos dois compinchas era observar as nossas mulheres a olhar e cochichar.
Delicioso!
Quando saímos, elas confessaram que tinha sido uma experiência única (não esperava que dissessem que tinha sido uma experiência repetida). Acharam que as pessoas se comportavam muito bem (nem sempre, nem sempre, digo eu!). Mas o que mais as tinha surpreendido tinha sido o facto de as meretrizes não estarem vestidas em trajes ínfimos, com meias de rede, ligas à mostra e peitos impudicamente exibidos – deformação resultante do que viam no cinema, certamente – mas vestidas com toda a normalidade.
- Se visse alguma delas na rua diria que era uma moça que andava a estudar – comentou a minha cara-metade.
Pois é!
As aparências iludem!
Sábado, 18 de Junho de 2005
O cortador de carnes verdes
“Um dia vos falarei das minhas aventuras como comandante do Destacamento de Marinha do Cuando. Bom…o destacamento eram trezes homens, incluindo eu. E mais uma lancha de desembarque pequena. Mas que grande tropa eu ia comandar!”.
Foi assim que terminei o texto que publiquei aqui, no primeiro dia de Junho deste ano, com o título: Sobrevoando a savana
Estávamos no final de 1974.
O destacamento era constituído pelo comandante, um sargento, um cabo, cinco marinheiros e cinco grumetes.
Sabem o que distingue um marinheiro de um grumete?
O primeiro é o que fica aprovado no curso de uma das muitas especialidades existentes na Armada. O grumete é o que chumba.
Aprendam que eu não duro sempre!
Os dois meses que passei no Rivungo foram dos mais originais que se podem viver.
Esta povoação do Cuando-Cubango, situada nas margens do rio Cuando, tinha duas ruas. Dispostas em L. A maior era paralela ao rio, e teria uns cem metros. O quartel ficava situado na extremidade do L mais afastada da rua mais pequena, que devia ter cinquenta. Ambas eram largas e em terra batida; a mais curta tinha mesmo separador central.
O nosso poiso era constituído por uma pequena construção em tijolo rebocado. Aí ficavam meia dúzia de divisões, sendo uma delas o meu quarto. O sargento e o cabo também aí tinham umas instalações tão pobres como a minha.
Havia ainda uma segunda construção relativamente sólida onde dormiam os outros dez bravos.
Um coberto onde um assalariado autóctone, o João Jacare cozinhava.
Um outro onde estava a mesa para se tomarem as refeições e havia dois frigoríficos a petróleo.
Tínhamos um galinheiro e uma pocilga.
Uma torre de vigia em madeira.
A lancha de desembarque (não que andássemos a treinar para invadir a Normandia, mas porque tendo fundo chato permitia navegar no estreito rio que tinha muitos bancos de areia) e, ainda, dois jeeps.
No aglomerado havia também um pequeno quartel do Exército (cerca de trinta homens, todos angolanos, dos quais só o alferes e dois furriéis eram brancos), a Administração de Posto, um pequeno hospital (que nunca funcionou), uma mini esquadra da Polícia com quatro agentes, a casa onde vivia o Sr. Lebre, mulato que administrava a localidade, a casa dos dois Pides, a do Camassango, um sujeito que era o responsável pela “investigação agrária” (o rapaz tinha um gira-discos com um som pior que horroroso, mas era com a sua música que fazíamos os bailes nocturnos duas ou três vezes por semana, com música africana, pois claro, senão as raparigas íam embora), a casa dos dois enfermeiros, negros e beberrões, e acho que não me esqueci de nada.
Uma coisa importante. Havia luz eléctrica. Água e saneamento é que nem pensar!
O resto eram cubatas feitas de terra seca com cobertura de folhas de uma árvore de que não sei o nome.
Nunca soube exactamente quantas pessoas ali viviam. Mas deviam ser muito mais de um milhar.
O avião que para lá me transportara, todas as semanas levava o correio, o jornal Expresso (um luxo onde eu lia as novidades da revolução) e a comida que só dava para quatro dias.
Para comer nos outros três era preciso ir para a savana caçar. E que boa carne saboreei! Até javali comi, qual Obélix!
Uma vez por mês, vinha pela picada um camião com as bebidas. Calhavam duas cervejas e um refrigerante a cada um, por dia. Alguns bebiam tudo numa semana, ou menos. Depois, tinham que se saciar com água tratada em filtros porosos ou compravam as bebidas engarrafadas aos que tinham espírito mais comercial.
Depois desta fastidiosa tentativa de vos explicar o que era o Rivungo, vou-vos falar do Lima.
Era um dos grumetes, natural do Minho, e que fora empregado num talho. Cortador de carnes verdes, portanto. Quando a falta de comida ou o insucesso nas caçadas exigiam que se matassem uns frangos ou uns leitões da nossa pecuária, era ele quem se encarregava de dar a facada letal e fazer o trabalho de talhante. E era impecável nessa função. Elemento imprescindível, portanto.
Uma manhã, entrava eu com as minhas calças de bombazina castanhas, sapatilhas em bota e T-shirt preta (nunca andávamos fardados, pois aquilo era uma tropa muito especial) na edificação onde ficavam os meus aposentos, e vi o Lima estendido no chão e outro dos nossos a dar-lhe bofetadas na cara.
Perante tal cena, engrossei a voz para ficar mais comandante e gritei:
- Mas que merda é esta? Larga imediatamente o rapaz!
O moço, cujo nome não recordo, olhou para mim com um ar assustado e disse:
- Ó senhor tenente! Eu não lhe estou a bater. Foi ele que desmaiou e estou a tentar acordá-lo.
Imediatamente comecei a ajudá-lo em tão prestimosa tarefa dando uns tabefes no Lima.
Ao cabo de um ou dois minutos o rapaz começou a voltar a si.
Mandei o outro buscar um copo com água (era preciso poupar as outras bebidas para momentos mais solenes) e, enquanto o valente minhoto se recompunha, perguntei ao socorrista:
- Mas porque é que ele desmaiou?
- Porque se picou num dedo e quando viu sangue, caiu redondo.
Eu não queria acreditar.
- Estás a gozar comigo? – disse um tanto agastado – então ele mata porcos e galinhas e desmaia por ver uma pintinha de sangue no dedo?
E foi o próprio Lima que me explicou:
- É verdade, senhor tenente. Ver o sangue dos outros não me faz impressão nenhuma, mas se vejo o meu, nem que seja uma coisinha de nada, não aguento e desmaio.
Fiquei varado. Nunca tinha imaginado que tal pudesse suceder. Mas era mesmo assim.
As pessoas são mesmo bizarras, não são?
Terça-feira, 14 de Junho de 2005
Vocação religiosa
Isto das histórias do passado é como as cerejas.
Tira-se uma e vem logo atrás duas ou três. Ou mais.
Por isso vou-vos fazer mais uma narrativa dos meus tempos de escola primária.
Tudo começou no ano lectivo de 1957/58. O ano em que fui gloriosamente eleito chefe de turma.
Numa manhã duma quinta-feira normalíssima, a já conhecida D. Ester, dedicada e competente professora, estava dando a sua aula quando se ouviu um truz-truz na porta.
A mestra foi abri-la e surgiu um padre. Vestido a preceito, pois naquele tempo não havia padres à paisana. E com coroa, pois claro.
Era muito jovem e com boa figura.
Como mandavam as regras, a malta levantou-se toda. Era a forma oficial de saudação e de mostrar boa educação.
Logo a seguir disse a senhora:
- Podem sentar-se. O senhor padre autoriza.
Cumprida a ordem, continuou:
- Este é o Sr. Padre Rocha que virá aqui à aula, todas as quintas feiras, para vos dar uma lição de Religião e Moral. Durará cerca de uma hora. E portem-se bem!
Ouviu-se um burburinho que foi imediatamente interrompido por um mero olhar mais carrancudo da professora.
E o padre começou quasi de imediato a falar.
Não sei o que disse.
Sei que logo nesse dia começou a cativar-nos com a sua forma serena de estar e o modo como se nos dirigia e fazia participar nas questões tratadas.
E, a partir daí, a horinha com o padre Rocha era um momento sempre desejado.
Chegados ao fim do ano escolar, todos pedimos ao sacerdote para voltar no ano seguinte.
Disse que gostaria muito, mas não sabia se era possível.
Acabadas as férias grandes, voltamos à escola. Agora na 4ª classe.
Numa das primeiras quintas-feiras, apareceu a D. Ester com um ar contristado a dizer:
- Hoje vão começar novamente as aulas de Religião e Moral.
- Vem o padre Rocha? – gritamos.
- Não!
- Oh!!! – saiu-nos pesaroso e redondinho este “Oh!!!”
- Não pôde ser. Mas o senhor padre que vem este ano também é muito bom.
Qual quê! Queríamos era o padre Rocha.
Eis que um dos alunos grita:
- O padre Rocha está ali escondido atrás da porta. Eu vi-o!
Desmascarado, o sacerdote entrou, perante os gritos e palmas de euforia da rapaziada e os sorrisos complacentes dos dois adultos.
E, durante todo o ano, essas horinhas foram um regalo.
O padre Rocha tinha um verdadeiro talento para lidar com crianças.
Terminado o ano, feitos os exames da 4ª e de admissão, começaram as merecidas férias antes de uma nova etapa das nossas vidas ter início.
Uma ou duas semanas depois de iniciadas as férias, houve um telefonema do padre Rocha para casa dos meus pais.
Foi a minha mãe quem atendeu. Era o jovem clérigo que pretendia convidar-me para um lanche nas esplanadas do Palácio de Cristal. A mim e ao Quim Delgado (este Quim não tem nada a ver com o outro de que falei na história do “esquentamento de consciência”, convém dizê-lo por causa das dúvidas). Após alguns telefonemas, tudo ficou aprazado para uma das tardes seguintes. O Delgado viria ter a minha casa e depois, os três, iríamos merendar.
Entretanto, a minha irmã, com os seus oito aninhos, mas sempre muito ladina e desconcertante, ia observando tudo.
- Ó Tone! Ainda vais para padre! – e ria-se com ar trocista.
Há hora do jantar, e depois de posto ao corrente da situação, o meu pai não se mostrou muito agradado:
- Já percebi que ele anda a pescar rapazes para o seminário. Mas tu não estás interessado em ir para padre, pois não, meu filho?
- Não, papá!
E, de facto, nunca sentira a menor vocação para o sacerdócio. Dizia sempre que queria casar e ter filhos.
E chegou o dia combinado.
O Quim Delgado já tinha vindo e estávamos ambos a brincar na rua.
E chegou o padre. Beijinhos, entramos em casa, a minha mãe fez o papel de anfitriã e a minha irmã lá estava muito caladinha.
A certa altura, o padre fez uma primeira abordagem à nossa ida para o seminário.
E a minha maninha não se conteve. Usando uma expressão que ouvira várias vezes, não só lá em casa mas também na de outros familiares e amigos, disparou:
- Ele não quer ir para padre porque os padres são capados!
Meu Deus!
Padre com sorriso amarelíssimo. Mãe aflitíssima. Eu embasbacado. Quim…nem reparei. E a Nandinha com um sorriso de orelha a orelha!
A minha pobre mãe desfez-se em desculpas. O padre dizia que era normal nas crianças.
E lá fomos para o Palácio que era a melhor maneira de fugir ao embaraço.
De resto, tudo correu bem.
Estava uma bela tarde de Julho e o nosso amigo sacerdote ainda voltou a falar no assunto, agora de forma mais directa, mas ambos fomos peremptórios a dizer que não era essa a nossa vocação.
Regressamos a casa, fizeram-se as despedidas e o clérigo abalou.
Durante alguns anos não ouvi falar no padre Rocha.
Cinco ou seis anos depois, estava eu a ler a necrologia (no que imitava o meu pai) d´O Comércio do Porto, que era o jornal diário lido em casa, quando se me deparou a notícia, brutal!
Tinha morrido, vítima de doença prolongada, o Rev. António da Rocha Soares.
Devia andar pelos trinta anos. Nem tivera tempo de envelhecer. Que injustiça!
(acho que ainda verti uma lagrimazita)
Sábado, 11 de Junho de 2005
Em Paris
Paris!
Cidade mítica!
Desde criança que a capital francesa era o local mais apetecido para um dia visitar.
Não me perguntem porquê. Provavelmente porque desde sempre ouvi e li coisas lindas sobre a cidade Luz. Talvez por lhe chamarem cidade Luz.
E o dia de visitar Paris começou a desenhar-se quando integrei a Comissão Organizadora da viagem de curso.
Não foi inocente a minha opção de participar nessa comissão.
Havia alguns sítios que muito gostava de conhecer e, ao ter capacidade de intervir na escolha do itinerário…estão a perceber, não estão?
E um desses locais era, obviamente, a mundana cidade centro da Europa.
Foi assim que, a vinte e nove de Março de 1973, a camioneta com os 34 viajantes deixou Bruxelas e se dirigiu a Paris.
Ficamos instalados em dois hotéis, pois não tínhamos encontrado um que, por si só, tivesse vagas para todos. Eu e um grupo mais pequeno fomos alojados no Hotel Peiffer, na rua de l´Arcade, pertinho da Madeleine.
O Jacinto (lembram-se da aventura na “zona” de Amsterdam?), ainda hoje grande amigo, já o era na altura. E, muitas vezes, os dois fugíamos aos outros para procurar descobrir esse mundo novo que era a Europa desenvolvida, da liberdade e da democracia, mais à vontade. Quando anda muita gente junta, acaba por se perder mais tempo. Uns querem isto, outros aquilo. Não acham que é assim? E um dia e duas noites em Paris não dão para desperdiçar um minuto que seja.
Pois foi com ele que partilhei o hotel e toda a aventura parisiense.
Na primeira noite fomos passear a pé pela cidade. O Arco do Triunfo, Campos Elíseos, Pigalle. Enfim! A noite parisiense na rua.
Chegados ao hotel, e perante um mapa da cidade e outro do metro, planeamos com todo o rigor possível o que faríamos no dia seguinte.
Bem cedo, descemos para o pequeno-almoço.
Fomos servidos à mesa por uma bela empregada a quem lançamos uns piropos no melhor francês que conseguimos esgalhar.
E como a mocinha não falava português, fizemos alguns comentários (usando mesmo o vernáculo à moda do Porto) a zonas da sua anatomia que nos chamaram a atenção de forma mais destacada.
Refeição acabada, toca a pegar nas coisas e pés a caminho para a estação do metro.
Já na rua, ouvimos uma voz de mulher a chamar. Instintivamente, olhamos para trás. Era a empregada que nos servira no hotel e que, em bom português, disse:
- Acho que esta máquina fotográfica é de um dos senhores!
Ficamos positivamente petrificados. Afinal, a bela francesa era...uma emigrante portuguesa.
Mas, rapidamente refeitos do impacto daquela verdadeira traulitada na cachola, foi o Jacinto quem retorquiu:
- É minha! Muito obrigado!
E a visita ao Paris diurno começou.
Madeleine, Notre Dâme, Louvre, Torre Eiffel, Inválidos, Túmulo de Napoleão, Opera, Saint Germain e mais uns quantos locais que não relembro de momento.
Mas uma das coisas fascinantes em Paris é que em cada rua, em cada praça, ao dobrar de cada esquina, lá está um monumento, dos mais conhecidos ou dos outros que não sendo tão famosos são igualmente belos.
Devo dizer que uma das obras que mais me impressionou, pois nunca a vira em fotografia, foi o túmulo de Napoleão. Essa famosa personagem histórica dissera, em vida, que as pessoas se curvariam perante ele mesmo depois da sua morte. E, de facto, o mausoléu fica num piso inferior ao da entrada, existindo uma abertura circular com um murete e a primeira coisa que as pessoas normalmente fazem é ir junto dessa varanda e inclinar-se para ver cá em baixo o túmulo do imperador.
Também quero referir que fomos ao famoso e velhinho mercado Les Halles. Já estava tudo vazio, inclusive as tabernas da sua vizinhança onde, por certo, muitas canções teriam sido cantadas com o acompanhamento do imprescindível acordeão. Estava tudo deserto pois iria ser demolido, em breve. No seu lugar está hoje o Centro Pompidou (espero não estar a dizer asneira).
A certa altura, penso que exactamente nessa zona, dirigimo-nos a um sujeito de meia-idade para lhe pedir uma qualquer indicação acerca de um local que pretendíamos ver. Prontificou-se logo a levar-nos ao tal lugar, que era bem pertinho, aliás. Quis saber de onde éramos.
- Nous sommes portugais! – disse eu.
- Também eu! – retorquiu o homenzinho.
Tinha de ser. Quem, senão um português, poderia ter toda aquela hospitalidade?
E estivemos a conversar um pouco com o emigrante que estava radiante por nos ter encontrado.
E assim passamos o dia.
Regressados ao hotel, depois de ter comido qualquer coisa rapidinha (naquele tempo ainda não havia “fast food” mas, umas sandes e uma cervejinha, pouco demoraram), preparamo-nos para o “Paris by night”. Mas onde haveríamos de ir?
Perguntamos à recepcionista, uma jovem francesa (esta era mesmo…) muito bem arranjada e maquilhada, aonde nos aconselhava ir: Lido, Folies Bergères, Molin Rouge…
Respondeu com o seu sotaque parisiense (eu quasi morro quando ouço uma mulher a falar com aquela entoação; até fico a tremer de excitação, confesso) não sem antes nos mirar dos pés à cabeça:
- Pour vous…je vous conseille le Crazy Horse.
Nunca tínhamos ouvido falar de tal cabaret. Mas a rapariga devia saber do assunto e, depois de tomarmos a decisão, explicou-nos como se ia para lá.
E fomos ao Crazy Horse Saloon de Paris (fundado pelo Sr. Alain Bernardin que dirigia a casa com mão de ferro; faleceu há poucos anos). Ficava, e penso que ainda é no mesmo local, na zona dos Campos Elíseos, rua George V.
Ocupamos a nossa mesa. A sala era pequena e estava cheia. Predominavam os italianos, sendo a maioria casais. Pedimos uma cerveja que foi servida num copo enorme.
E o espectáculo começou.
Foram duas horas de um show erótico de elevado profissionalismo e com as mulheres com os corpos mais esculturais que já admirei. Só visto! Não sei descrever quão fabulosamente bem modelados, flexíveis e sensuais eram. Acho que durante algum tempo acreditei que Deus existia. Só uma divindade poderia fazer coisas tão belas!
Mais tarde, pela passagem de ano, e várias vezes, vi reportagens na RTP sobre a noite de Paris e lá vinha sempre em destaque o Crazy Horse. Algumas delas eram mesmo só sobre este cabaret. Tenho tudo gravado em cassete de vídeo. Como se costuma dizer: cada tolo com a sua mania!
No dia seguinte, quando fazíamos a viagem para Bordéus, conversando e comparando experiências com outros colegas que tinham ido a outros cabarets, eu e o Jacinto concordamos que em boa hora tínhamos pedido o conselho à recepcionista parisiense.
Nunca mais voltei a Paris!
Costuma-se dizer, para realçar a beleza da cidade italiana dos canais:
“Ir a Veneza…e morrer!”.
Eu digo:
“Ir outra vez a Paris…e morrer!".
Terça-feira, 7 de Junho de 2005
O chefe de turma
Decorria o ano lectivo de 1957/58, mas a acção centra-se num dia dos primeiros meses de 1958.
Andava na 3ª classe.
A professora era a D. Ester a quem já me referi no post “Eu, borboleta”.
Eu era um dos melhores alunos (como é óbvio…tosse, muita tosse) e como tal, quando havia matéria nova, lá ia o Castilho (era o meu nome de guerra) ao quadro para resolver os primeiros problemas e dar as primeiras respostas. Pobre de mim! Muita porrada apanhei por causa dessas chamadas de mérito. Como não era o crânio que a professora gostaria que eu fosse, irritava-se e pumba, catrapumba! Mas acabava por aprender!
Mas, dizia eu, estávamos em 1958.
Foi o ano das últimas eleições directas para Presidente da República no regime de Salazar.
Inicialmente, havia 3 candidatos:
O Dr. Arlindo Vicente, apoiado pelos comunistas e afins.
O General Humberto Delgado, suportado pelos democratas anti-salazaristas.
O Contra-Almirante Américo Thomaz, pelo partido único, a União Nacional.
Graças à extraordinária adesão popular que foi aglutinando o oficial do Exército, o candidato Vicente acabou por desistir e os vermelhos, apesar de lhe chamarem General Coca-Cola devido a uma ligação forte de Delgado aos EUA, acabaram por o apoiar.
Ainda me lembro de meu pai me ter levado a algumas acções de campanha do General (que ele considerava não irem ser alvo de acções policiais e, portanto, não serem arriscadas para um catraio) e, nomeadamente, da ida à sede de candidatura no Porto que ficava na Praça da República.
Como é do conhecimento geral, graças a muita trafulhice, o Thomaz lá ganhou a farsa eleitoral.
E, pouco depois, a Assembleia Nacional legislava no sentido de que a eleição do presidente passasse a ser feita nessa mesma Assembleia.
Enfim…ditadura tem de ser mesmo assim, senão não é ditadura.
Ora, nesse curto período de tempo em que se podia falar em democracia com razoável liberdade, aconteceu algo de inédito na minha classe.
A D. Ester, uma bela manhã (se não era bela, façam de conta) apareceu na sala com uma daquelas caixas de cartão em que trazíamos os sapatos novos da sapataria. Tinha uma ranhura no centro da tampa. Colocou-a sobre a secretária.
Da bolsa retirou um montinho de pequenos papéis quadrados, brancos, sem nada escrito.
E, com ar pomposo, anunciou:
- Hoje vamos eleger o chefe de turma.
A rapaziada ficou a olhar, muito provavelmente com cara de parvos, pois a situação era inédita e completamente inesperada.
- Cada aluno escreve num destes papelinhos o nome do colega que acha que deve ser o chefe de turma, dobra-o em quatro, e vem metê-lo nesta caixa por este buraquinho. Perceberam?
- E que faz o chefe de turma? – perguntou um dos miúdos, revelando alguma argúcia e muito desplante.
A mestra lá disse umas coisas de que não me lembro.
Distribuiu um papel a cada um e repetiu as instruções.
O silêncio era solene.
Os alunos sentiram que era preciso ser responsável naquele momento e foram meditando em quem votariam. E escrevendo.
- Ó senhora professora, pode-me dar outro papel que me enganei?
Lembro-me que votei no Gouveia, o puto que partilhava a carteira comigo.
Terminada esta fase, seguiu-se a contagem dos votos.
D. Ester vai desembrulhando os boletins de voto (chamemos-lhe assim, para dar mais pompa à narrativa) e dizendo em voz alta o nome que estava escrito em cada um:
- Castilho
- Castilho
- Castilho
- Guerreiro
- Castilho
- Castilho
- Irineu
…e assim por diante.
Eu estava estupefacto, pois jamais me passara pela cabeça ser tão bem cotado entre os meus colegas. E devia estar vermelho como um tomate.
Ganhei as eleições!
Por uma larguíssima margem.
Depois de ter sido declarado chefe de turma, a professora pediu um aplauso para o vencedor que entretanto fora chamado ao palco, quero dizer, para cima do estrado.
E foi bonito de ver o maralhal todo a bater-me palmas e a gritar:
Cas-ti-lho! Cas-ti-lho! Cas-ti-lho!
Até as professoras das outras salas vieram presenciar tão vibrante momento de democracia e glória.
Para encerrar a sessão, o Guerreiro, o Irineu e mais um ou dois ganapos que haviam ficado nos lugares seguintes, vieram abraçar-me por indicação da senhora. O Chico Irineu chorava como uma Madalena por ter perdido (anos mais tarde perderia um pé devido à explosão de uma mina na Guiné).
Confesso que esse dia foi um dos mais gloriosos da minha vida.
No ano seguinte não houve eleições.
A professora nomeou como chefe de turma o Guerreiro, que por acaso era filho da reitora do Liceu de Rainha Santa Isabel.
Puras coincidências, claro!
Domingo, 5 de Junho de 2005
Línguas traiçoeiras
Quando escrevo “línguas” no título desta lenga-lenga que agora começo a teclar, não me estou a referir ao órgão carnudo que temos (e os outros animais vertebrados) na cavidade bocal e que serve para ajudar à deglutição de alimentos, para lamber selos, para fazer chacota das pessoas quando a pomos cá para fora, para comer (adoro língua de vaca), para fazer bolinhas com chiclets, para mostrar ao médico numa consulta antes dele nos fizer que estamos com maus fígados e outras utilizações mais ou menos nobres como alguns jogos amorosos sobre os quais eu não me vou pronunciar pois, quem isto ler já está, tenho a certeza, muito bem documentado na matéria, mesmo sem ter tido aulas de Educação Sexual.
Refiro-me, isso sim, a “línguas” no sentido de “idiomas”.
Feito este fundamental esclarecimento prévio que certamente muito contribuirá para a elevação do nível cultural dos prezados leitores, vou contar uma historinha:
Um velho amigo, o Vitor, é filho de um industrial têxtil.
E é também um dos tipos mais inteligentes e cultos que conheci e conheço.
Lê imenso, nomeadamente revistas estrangeiras, sendo um grande conhecedor de assuntos ligados à guerra, nomeadamente armamento, em sentido restrito, mas também navios de guerra, aviões de combate e transporte logístico, tanques, mísseis, sistemas de comunicação e outras coisas ligadas à Defesa.
Os conhecimentos que tem nessa área são quasi enciclopédicos.
Penso que começou a interessar-se pelo assunto quando foi estudar engenharia Electrotécnica, na área das chamadas correntes fracas, tendo acabado o curso com grande gosto pela electrónica e por um dos sectores em que este ramo do saber é mais testado e usado enquanto tecnologia de ponta: exactamente o armamento militar, em sentido lato (as armas, mas também os navios, aviões, etc.). Sobretudo o equipamento e sistemas militares norte-americanos. Os ex-soviéticos seriam melhores, talvez, na parte de materiais, ligas metálicas, mas na electrónica, os ianques levavam-lhes a palma.
Não nos esqueçamos que uma das causas imediatas da queda do império bolchevique foi a chamada Guerra das Estrelas que Ronald Reagan decidiu lançar, provocando um esforço de resposta por parte dos comunistas que muito debilitou as suas finanças.
Mas voltemos ao Vítor.
Mal acabou o curso, foi gerir uma empresa que o pai acabara de criar. Do sector têxtil, claro!
Isto aconteceu poucos meses antes do 25 de Abril, o que obrigou o então jovem a um grande esforço de preparação técnica e lhe deu vasta experiência na parte humana ao ter de enfrentar, com vinte e poucos anos, toda a turbulência laboral pós-revolução.
Mas não é sobre isso que vos vinha falar.
É sobre uma situação pela qual o Vítor passou logo no início da sua actividade empresarial.
Ao falar com fornecedores e técnicos estrangeiros que o visitavam usando a universal língua inglesa, tinha dificuldade em fazer-se entender e em compreender, nomeadamente quando discutiam questões relativas a fio têxtil.
Como tivera uma formação no campo electrotécnico, usava a palavra “wire” que significa, de facto, fio eléctrico.
E ainda demorou algumas semanas e aprender que fio têxtil se diz “yarn”.
Depois digam que a língua portuguesa é muito traiçoeira!
Quarta-feira, 1 de Junho de 2005
Sobrevoando a savana
Em Outubro de 1974 estava em Luanda, alojado na messe dos oficiais da Armada, junto à Base Naval, na Ilha do Cabo.
Tinha regressado de três meses em S. Tomé e Príncipe onde estivera em missão de patrulhamento a bordo do “Rovuma”.
Já vos descrevi alguns aspectos do navio e sua guarnição no meu post “O meu 25 de Abril” publicado nesse mesmo dia deste ano da graça (ou da desgraça) de 2005.
Entretanto, o navio ficou em estaleiro para reparações.
Uma bela manhã, recebi uma comunicação do Comando Naval para lá me apresentar.
Ficava na marginal e cheguei rapidamente.
Deram-me instruções para seguir para o Rivungo, substituir durante um mês o comandante do Destacamento de Marinha do Cuando e assim permitir que ele viesse de férias.
Não gostei da ideia, mas nada mais me restava senão cumpri-la.
O Destacamento ficava no extremo sudeste de Angola, juntinho à Zâmbia, e tinha fama de ser o verdadeiro Cu de Judas, bem mais cu e bem mais Judas que o açoriano, de S. Miguel.
Quem de lá regressava, após dois anos de comissão de serviço, vinha seguramente apanhado da mona. Felizmente eu só ficaria um mês. Aí, a ideia de conhecer o desconhecido, de fazer uma viagem às terras do fim do mundo, começou a aparecer-me com alguns atractivos.
E lá fui!
Alguns dias depois, voei até ao Kuíto (ex-Silva Porto). Não vi nada dessa cidade porque pouco depois apanhei mais um voo comercial até Menongue (ex-Serpa Pinto).
Aí pernoitei no hotel Luiana e ainda tive tempo de apreciar uma pequena mas bonita cidade, com uma calmaria tal que, se a algum forasteiro fosse dito que estava num país em guerra, certamente não acreditaria.
Era, e é, a capital do distrito do Cuando-Cubango ou, na ortografia actual, Kuando-Kubango.
Teria de voar para o outro extremo desse distrito.
Para isso, dirigi-me novamente ao aeroporto onde tinha sido reservado um lugar na avioneta que fazia semanalmente a circuito nessa área para transporte de pessoas, pequenas mercadorias, correio, jornais, alimentos e pouco mais.
Carregando a bagagem, que não era tão pouca como isso, pois sempre tive relutância em separar-me das minhas coisas (ainda hoje sou assim), lá fui ter com o piloto da aeronave. E não esqueci a máquina fotográfica.
Cumpridas as formalidades, entrei para bordo.
Era um minúsculo avião de quatro lugares. Só havia duas pessoas a bordo. O piloto e eu, ocupando os dianteiros. As bagagens ocupavam os de trás.
E começou o ronronar dos motores…
Motores?
Porra! Aquilo só tinha um motor!
Comecei a ficar preocupado. Se o motor avariasse, restava nada, quer dizer, queda a pique.
Bom! Mas manda quem pode e obedece quem deve! Eu bem gostaria de ir numa coisa com quatro motores no mínimo, mas…
Confessei ao parceiro algum receio, só algum, para não fazer muito má figura. Disse-me para não me preocupar pois nada iria acontecer. Ainda para mais o tempo estava óptimo.
Fiz que acreditei.
A rota era para sul, numa primeira fase. E pouco depois vi-me a sobrevoar a verdadeira savana africana, território de elefantes, leões, girafas, zebras, gazelas, javalis, eu sei lá…ah…e os crocodilos e hipopótamos nos rios.
Chegados junto da fronteira com a Namíbia (na altura ainda um país colonizado e chamado de Sudoeste Africano), alteramos o rumo para leste, seguindo o rio Kubango, que corre exactamente nesse sentido e faz o limite fronteiriço.
A certa altura a avioneta começou a descer e aterrou aos solavancos na pista de terra batida de Cuangar, pequena povoação onde viviam quasi exclusivamente indígenas.
O piloto deixava umas coisas e carregava outras. Eu apreciava tudo aquilo que era completamente novo para mim.
E aqui vai disto! Mais solavancos e avião no ar.
O certo é que o aviãozito parecia funcionar bem. E o piloto sabia do ofício, sem dúvida.
A escala seria agora em Calai, e depois de ter estado junto ao solo, pude verificar que toda aquela região era muito plana e geologicamente velha, de solo mole, arenoso mesmo, com uma escassa vegetação rasteira, meio seca, e com árvores de pequeno ou médio porte disseminadas em pequenos grupos. Um tanto como os chaparros no Alentejo, mas com uma velhice e uma secura bem maiores.
Do ar, viam-se alguns troncos, ainda em pé, a arder. Era o resultado da queda de raios pois nesse território eram frequentes as trovoadas.
De repente, vi uma enorme manada de elefantes. Parecia um formigueiro. Clique…já está! Fiz uma das fotos que ainda guardo.
E começou a descida para Calai.
Repetiu-se a cena.
E mais adiante Dirico.
O aviãozinho rumou então para nordeste em direcção ao meu destino: Rivungo.
Já se avistava o rio Kuando, que corria para sul.
Cheguei são e salvo.
E aí vivi dois (acabei for ficar o dobro do tempo) meses completamente diferentes de tudo o que havia experimentado ou alguma vez viria a vivenciar.
Um dia vos falarei das minhas aventuras como comandante do Destacamento de Marinha do Cuando. Bom…o destacamento eram trezes homens, incluindo eu. E mais uma lancha de desembarque pequena. Mas que grande tropa eu ia comandar!
Sábado, 28 de Maio de 2005
Eu, assassino
Ano de 1958.
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.
Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que moravam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Era de lá que os conhecíamos.
Chegado a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos:
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todas as personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem foi o assassino.
Fui eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou a sexta-feira e, mal entrei no edifício escolar, comecei a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abriu-me a porta e eu disparei de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito macilenta – comentou, inteligentemente, a mamã.
Passados uns minutos chegou o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decidiu rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decidiu, de novo rapidamente como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propagou-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo seguinte, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira, amigo de ambas as famílias e que também ía a banhos para a vila minhota onde minha mãe nascera, bem como o meu primo Zé, segundo filho da minha tia Bela que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), viriam ter a nossa casa para depois irem os três a casa do Renato apresentar os pêsames à viúva.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, tocou a campainha.
Era o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro “senhor-de-não-te-rales” que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco. Vinha, como habitualmente aos domingos, almoçar connosco.
Aberta a porta, disse ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – perguntou o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafou o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atirou-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordenou o chefe da família.
E passado um pouco, estava o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – informou o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muitos alunos que viviam para esses lados, embora ele fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?
Segunda-feira, 23 de Maio de 2005
A tísica
Uma peripécia que ouvi a meu pai, várias vezes, passou-se no Porto do final dos anos 30, início dos anos 40.
No tempo em que os rapazes e mesmo alguns cavalheiros, íam para o passeio d’ ”A Brasileira”, mesmo ao fundo da rua de Sá da Bandeira, onde havia uma paragem dos eléctricos.
E os malandrecos estavam lá para conversar? Sim! Mas também à espera que as meninas subissem para o velho transporte citadino e deste modo poderem ver-lhes o tornozelo. Leram bem! O tornozelo! De facto, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Por essa altura, seria o meu pai um adolescente ou pouco mais do que isso, mas trabalhava desde os 9 anos pois a vida fora-lhe madrasta. E como o fazia na baixa portuense podia também apreciar essas “impúdicas” exibições.
Mas era também o tempo da tuberculose.
Doença terrível, que já vinha, há muitos anos, dizimando famílias, por vezes inteiras, sem escolher condição social e económica, tal a facilidade de transmissão do bacilo de Cock, sua causa.
Não sei exactamente quando foi descoberto o melhor tratamento e, sobretudo, a vacina contra a epidémica maleita. Penso que por essa altura já o teria sido. Mas a implementação de um sistema de profilaxia e vacinação não se fazia de um dia para o outro.
E mesmo com o sistema em funcionamento, muita gente continuou a viver com o medo de apanhar uma tísica.
Era o caso de um tal senhor Menezes, pessoa de meia idade, sempre vestido a preceito, terno, gravata e o respectivo alfinete, relógio de ouro com corrente guardado no bolso do colete, emblema na lapela, sapato brilhante de graxa bem polida, bigodinho bem aparado, polainas e ceroulas no inverno e o imprescindível chapéu, colocado a preceito, que era ligeiramente levantado da cabeça para cumprimentar alguém conhecido, como complemento de uma vénia, de acordo com as regras da etiqueta.
Pois o Menezes, que constava ser homem de posses e vivendo dos rendimentos, era pessoa bem conhecida e muito cumprimentada.
Mas, não sei se por hipocondria ou não, tinha verdadeiro pavor de contrair tuberculose.
E como lutar contra semelhante praga quando as pessoas estavam constantemente a estender-lhe a mão para um caloroso aperto?
Ah, Menezes cuidadoso...
Um frasquinho de álcool no bolso do casaco e, após uma bacalhoada, discretamente, uma desinfecção das mãozinhas.
Outro aperto de mão, outra desinfecção.
Discreta, muito discreta, pois não podia ser visto sob pena de tal gesto ser considerado ofensivo para os cumprimentadores.
Claro que muitos o viam, incluindo o meu pai.
Mas a realidade é que o cavalheiro lá ía evitando a maldita doença.
Um dia, o meu progenitor lembrou-se de que não via o Menezes há algum tempo. Resolveu perguntar a pessoa do seu conhecimento que era feito do senhor.
- Morreu, coitado!
- Sim? E de quê?
- De tuberculose!
Sexta-feira, 20 de Maio de 2005
As putas de Amsterdam
Dans le port d´Amsterdam
Y a des marins qui boivent
Et qui boivent et reboivent
Et qui reboivent encore
Ils boivent à la santé
Des putains d´Amsterdam…
(Jacques Brel)
Já vos falei da viagem do meu curso de uma forma genérica.
E prometi contar-vos umas historietas. Eis uma delas:
Já na fase descendente do trajecto e após uma semana na Alemanha, chegamos finalmente a Amsterdam. Era um dos momentos mais esperados. A grande cidade era, na altura, o maior centro do movimento hippie na Europa. Algumas semanas antes, a praça central – o Dam – estava inundada por centenas ou milhares dos bizarros pacifistas. De tal modo, que o governo local vira-se na necessidade de os mandar sair dali. Como a ordem não tivesse sido acatada, uma intervenção da polícia à mangueirada tinha provocado o efeito pretendido.
Apesar de tudo, chegados ao hotel, cumpridas as formalidades habituais, atribuídos os quartos e arrumadas as coisas, lá fui com um grupo mais ou menos numeroso até ao Dam. Hippies, nem vê-los.
Mais umas voltinhas pela zona central, os colegas vão dispersando e acabamos juntos quatro mariolas. Eu, o Jacinto, o Afonso e o Domingos.
- Malta! – disse o Jacinto – Vamos até à “zona”?
- Siga! Temos de perguntar o caminho – apoiou um dos outros.
- Jantamos por lá! – sugeriu o sempre esfomeado Jacinto.
A “zona”!
Finalmente íamos ver a famigerada “zona” de Amsterdam.
O local de concentração da legalizada prostituição. Ficava perto do Dam.
Quando lá chegamos ainda era dia. Ao longo de dois canais, cada um deles ladeado por duas ruas ligadas por velhas pontes, numa extensão de 200 ou 300 metros, e com outras veredas, transversais, a fazerem a ligação entre os canais, estendia-se o casario típico das velhas construções dos Países-Baixos.
Mas, o que era verdadeiramente surpreendente eram as janelas de vidro único dessas casas: dentro de cada uma delas estava um mini quarto, ocupado por uma meretriz parcamente vestida, com uma pequena cama, almofadas, cadeira ou sofá, enfim, o necessário para tornar a entrada apetecida aos transeuntes mas carenciados. Nas ruas andavam principalmente turistas. Homens e mulheres, novos e velhos.
Havia ainda umas sexy-shops e umas casas de strip-tease que viemos a verificar serem bem foleiras.
Mas o centro das atenções eram as mulheres em exibição. A maioria novas, elegantes e bonitas. Também havia uns camafeus, mas poucos. Bastantes negras. Mas as loiras predominavam.
Completamente embasbacados, os quatro demos uma volta de reconhecimento e decidimos ir comer qualquer coisa. Rapidamente, pois queríamos voltar aos canais.
E por lá andamos até à meia-noite ou perto disso. Depois, a fadiga da viagem levou-nos para a cama.
Mas na noite seguinte, ainda em Amsterdam, voltamos para a “zona”. Os quatro. Outros colegas andavam por lá, alguns com as namoradas que ao longo da viagem tinham aprendido a encarar estas coisas com muito “fair-play”.
Entretanto, tivemos oportunidade de apreciar alguns clientes a entrar. Imediatamente uma cortina corria e impedia qualquer espreitadela de sexo ao vivo. Cronometramos. As sessões eram rápidas. Dez a quinze minutos. Perguntamos o preço: cinquenta marcos alemães (pois...moeda forte) que valiam na altura (fins de Março de 1972) cerca de quatrocentos escudos.
Mais umas voltinhas e o Afonso arrasou:
- Vou entrar!
- Força, pá! – dissemos nós.
Meu dito, meu feito. O arrojado portuga, com o seu ar bem parecido, entrou por uma das portas e foi para um quarto. Fechou-se a cortina. Começamos a cronometragem.
Cinco minutos. Dez minutos. Quinze minutos. Vinte minutos.
- Porra! O gajo é do caraças! – comentou um de nós.
- Os portugueses são assim – ironizou outro.
- O certo é que não vimos ninguém a demorar tanto tempo – comentei eu.
Ao fim de quasi meia-hora sai o nosso comparsa.
Mão nos bolsos do elegante sobretudo (as noites estavam frias) e um sorriso nos lábios.
- Então, pá? Conta lá isso!
- Tintim por tintim...
- Foi porreiro – disse o nosso herói.
- Mas como conseguiste aguentar tanto tempo?
- Vocês não sabem que eu sou bom? – gabou-se o Afonso.
E fomos caminhando.
A certa altura, o valentão parou e assim falou:
- Tenho de vos confessar uma coisa. Paguei...e não fodi!
- Como? – dissemos em coro – Então que aconteceu?
E o pobre Afonso lá nos contou que entretanto apareceu outra prostituta que, aparentemente, lhe dizia que tinha de pagar mais um tanto e ter relações com as duas, porque não podia ser só com uma, porque...porque...e depois falavam uma língua que não percebia. Até que entrou um homem. Aí, o nosso amigo é que não gostou mesmo nada da cena e acabou por sair.
- Mas pelo menos apalpei uma mama à gaja! – rematou com ar conformado o nosso ex-herói.
Segunda-feira, 16 de Maio de 2005
traz outro amigo também
Quando foi publicado o álbum “traz outro amigo também” do José Afonso, nos finais dos anos sessenta princípios dos setenta, o meu grande amigo Berto, um dos tipos mais inteligentes e mais cultos que conheço (então estudante na FEUP e actualmente no nível abaixo de catedrático de Engenharia Civil e projectista de vias de comunicação rodoviárias), não resistiu a comprá-lo.
Não era propriamente um revolucionário, mas tudo o que considerava ter qualidade, agradava-lhe. Ainda hoje é assim.
Seu pai, arquitecto talentoso e amante dos livros e da música, tinha uma biblioteca e uma discoteca de discos clássicos que davam gosto. Muitas vezes ouvi obras de grandes compositores na sua casa. Desapareceu da nossa companhia precocemente, quando ainda caminhava para o sucesso e reconhecimento público que merecia.
Pois quando o Berto chegou, depois de ter adquirido o LP, encontrou na sala o pai com um amigo.
Muito satisfeito, exibiu o disco como um troféu e falou dele como de uma obra-prima.
O professor, pois o pai também tinha essa actividade, perante tantas loas, não se conteve:
- Mas quem é esse tipo? Dizes que também é poeta? Ora, poemas desses também eu faço. Ou ainda melhores – e lançou um olhar de gozo ao amigo, que concordou.
- Ó pai! Estás a falar e não ouviste o disco. Portanto, estás a falar do que não sabes.
- Já ouvi esse tipo a cantar na rádio. Não o queiras comparar aos que são verdadeiramente talentosos, como o Camões, por exemplo. Pode ter uma voz agradável e algumas músicas com boa sonoridade, mas…
- Olha, pai! Neste disco, está uma canção cuja letra é um poema de Camões e as outras são quasi todas feitas com poemas do José Afonso.
E lançou o desafio:
- Eu ponho o disco a tocar e tu, e o Sr. Eng. também, no fim dizem qual dos poemas é do Camões. Reconhecem que o Camões é um poeta fora de série, não é verdade?
E esperou, com o ar mais sério do mundo a resposta ao repto que habilmente lançara.
O arquitecto hesitou um pouco. Mas não tinha alternativa, e anuiu. O amigo também.
E o Berto colocou o disco no prato do aparelho e sentou-se.
- Mas não digo os títulos – sentenciou o meu colega.
- Ah! As músicas também são quasi todas da sua autoria – esclareceu.
E vão passando sucessivamente:
“Traz outro amigo também”
- Hum…não me parece Camões. Podes eliminar.
“Maria Faia” (uma canção popular da Beira – Baixa)
- Esta não! Podes avançar!
“Canto Moço”
- Essa não elimines, para já!
“Epígrafe para a arte de furtar” (sobre um poema de Jorge de Sena)
- Hum…aguenta essa!
“Moda do Entrudo”
- Isso não! Passa à seguinte!
“Os eunucos”
- Essa também não! A seguinte!
“Avenida de Angola”
- Isso não é Camões!
“Canção do desterro”
- Aguenta essa! Muitas alusões ao mar!
“Verdes são os campos” (a que tinha como texto um poema de Camões)
- Essa tem laivos da lírica camoniana. É capaz de ser essa!
“Carta a Miguel Djéjé”
- Podes passar! Essa não é de certeza!
“Cantiga do monte”
- Não é má! Mas podes eliminar!
(todas aquelas em que não mencionei o autor tinham poemas do Zeca)
- Então pai? Ainda tens de optar por quatro.
- Põe essas outra vez – ordena o arquitecto.
E o Adalberto lá fez tocar as que não tinham sido eliminadas.
Terminada a segunda sessão, o pai ainda hesitava entre a realmente camoniana e o “Canto Moço”.
- Bom! – disse – é a dos campos verdes.
- É, pai! Mas, afinal, não há assim uma diferença tão grande entre o José Afonso e o Camões! – disparou o jovem com um sorriso mordaz.
- Ora! E esse gajo era capaz de escrever os Lusíadas ou compor a Nona?
- Se calhar fazia melhor! – murmurou entre dentes o Nando.
E agora vão ouvir o disquinho, está bem?
É dos melhores do Zeca, na minha opinião.
Sexta-feira, 13 de Maio de 2005
A viagem de curso
Nas férias da Páscoa de 1972 (reparem bem que foi antes de 1974 e, portanto, em plena época marcelista, da Guerra Colonial e da censura, entre outras coisas), trinta e três alunos finalistas do curso de Engenharia Química da FEUP (mais um professor), efectuaram a chamada “viagem decurso”.
Sem esquecer o motorista, peça fundamental da engrenagem – o Sr. Vendas.
Eu era um dos membros da Comissão Organizadora (só organizar uma coisa destas deu cá um gozo! …) que sempre se mostrou muito competente (pois… a gente também ía! …).
Esta viagem de autocarro através da Europa, na altura tão distante e tão inacessível (o regime não autorizava os rapazes em idade pré-serviço militar a saírem do país) foi, sem dúvida, um momento absolutamente inesquecível da minha vida.
Este texto é, fundamentalmente, um intróito que tem como objectivo primário gabar-me, fazer-vos podres de raiva e meter nojo e, como fim subsidiário, dar-vos uma ideia do enquadramento geral em que se passaram algumas historietas relacionadas com a passeata e que futuramente, se bem que ao sabor do imprevisto, aqui irei contar.
Foram vinte e quatro dias espantosos, a ver coisas de que ouvíramos falar, sobre as quais lêramos muito ou pouco, que víramos no cinema e na TV, mas sobretudo em fotografias nas revistas e jornais (e até mesmo em livros escolares) e que nos deixaram de boca aberta como se estivéssemos todo esse tempo no dentista (salvo seja!).
Vou-vos dizer qual o trajecto seguido:
Porto – Madrid – Barcelona – Andorra – Lyon – Genève – Zurich – Innsbruck – Garmisch – Ludwigschafen – Frankfurt – Koln – Amsterdam – Brussels – Paris – Bordeaux – Burgos – Porto.
Estas foram as terrinhas onde pernoitamos. Mas paramos, ou simplesmente atravessamos, outras. Munchen, por exemplo.
(optei por escrever o nome das cidades na língua original – removendo os tremas, que não sei como escrever – para meter ainda mais nojo!).
O curso tinha mais de setenta alunos. Dos que não fizeram a viagem, muitos se vieram a arrepender após ouvirem toda a panóplia de aventuras e desventuras que os ufanos excursionistas narraram.
O custo foi baixíssimo, porque os organizadores foram exímios (tosse, muita tosse) em arranjar dinheiro: quer com publicidade no livro de curso, quer com ajudas do ministério da Educação, quer ainda com a valiosa colaboração do DAAD, organismo dum ministério alemão que tinha como função apoiar estas iniciativas com o objectivo de promover aquele país.
Também visitamos umas empresas: a BASF, a Bayer, a Lurgi e a Foxboro.
Mas que era isto comparado com a neve em Andorra e na Áustria, com os lagos da Suiça, com as cervejas na Alemanha ou o Crazy Horse de Paris?
Peanuts!
E que tal? Roídinhos de inveja? Pois tem mesmo razão para isso!
Ainda hoje, quando se encontram colegas que partilharam a viagem, fazem-lhe sempre uma alusão, por mais curta que seja.
- Então quando é que vamos repetir a viagem de curso?
- Por mim começava já hoje!
E mais vos digo: se um dia chegasse a primeiro-ministro, haveria de dar mais um feriado aos portugueses; o dia 11 de Março (mas não por causa do golpe do Vasco Gonçalves e seus amigos).
Não posso deixar de realçar que toda a malta se portou impecavelmente, nomeadamente num ponto que costuma ser o mais complicado de cumprir: a comparência sempre à hora marcada para as partidas. Mesmo que os mancebos estivessem a morrer de sono ou as senhoras (que eram dezassete, metade da troupe) não tivessem a maquilhagem nos trinques.
Devido à crise académica de Coimbra de 69, alguns dos felizardos não se falavam (uns tinham feito greve aos exames, outros não). Mas no final já eram todos amigos outra vez.
E hoje fico-me por aqui.
A propósito! Que tal uma excursãozita destas, agora que se aproximam as férias?
Vão consultando as agências de viagem!
Sábado, 7 de Maio de 2005
O que penso do ensino básico
Comecei a escrever um comentário no blog “Fábulas” da Salta-pocinhas e a certa altura verifiquei que me tinha entusiasmado e escrevera muito mais do que tinha pensado inicialmente.
E também que acabara por expressar, de forma sucinta mas relativamente correcta, o meu pensamento essencial em relação ao ensino básico, que é a caixa de Pandora do nosso sistema escolar, neste momento e na minha opinião. Mas a responsabilidade não pertence aos professores (apetecia-me dizer: professoras). É dos responsáveis políticos. Dos governantes. E sobretudo de pseudo-pedagogos que parece que gostam de tratar as nossas criancinhas como cobaias.
Por isso resolvi transcrevê-lo para aqui. Com alguns ajustes.
Ao lerem o texto que se segue, não pensem que advogo o retorno às origens (acho que ainda não fossilizei).
Tão-somente que alguns princípios essenciais deveriam ser revistos à luz do que exponho.
Após este longo intróito, eis o comentário que resolvi transpor para aqui:
Nos anos 50, época em que fiz a primária de acordo com os cânones do salazarismo, havia turmas só de manhã ou só de tarde (pelo menos na minha escola).
Aprendia-se tudo e mais alguma coisa. Memorizava-se imenso. Claro! Naquelas idades a memória é fabulosa. Muitas coisas não eram percebidas nessa altura, mas sê-lo-iam mais tarde, nas mais variadas circunstâncias.
Mas também se aprendia a raciocinar. Fazíamos problemas que eu próprio, mais tarde, me perguntava como tinha conseguido resolver.
A criatividade era tão grande que desenvolvê-la não era muito importante. Orientá-la, isso sim.
Na 3ª classe já havia um exame. Fácil. Treino para o ano seguinte.
Na 4ª classe havia aulas de manhã, mas de tarde íamos quasi todos para casa da professora, todos os dias, das 2 às 7, para sermos bem “puxados”. E depois tínhamos o exame da 4ª classe, e ainda o de admissão aos liceus ou escolas técnicas. Penso que ambos a nível nacional. Que me conste, nunca nenhum de nós ficou marado ou traumatizado ou morreu de fadiga. Alguns chumbavam. A quantos eu vi que um ou dois chumbos fizeram bem! Deu-lhes tempo de amadurecimento e acabaram por se tornar dos melhores alunos.
Ah...e ainda apanhávamos reguadas, canadas e puxões de orelha.
Em suma: Faziam-nos aquilo que acho que não se faz hoje.
Obrigavam-nos a usar a cabeça, assim desenvolvendo as várias funções intelectuais.
Preparavam-nos para a vida, criando-nos dificuldades que resultavam em maior sentido de responsabilidade
Instruíam-nos, fornecendo conhecimento fundamental e geral.
E até nos complementavam a educação doméstica!
E ainda tínhamos a catequese ao domingo (coisa horrorosa!).
Actualmente, parece-me que tratam as criancinhas como "biblots".
E os alunos de hoje até são mais desenvoltos que os de há cinquenta anos. Acho eu!
A escola actual não cumpre bem o seu papel: desenvolver a mente, instruir e responsabilizar.
Agora, por favor, contem até dez antes de me chamar reaccionário! É que não o sou!
Mas sei que naquele tempo havia também algumas coisas mais correctas que hoje.
E se há coisa em que a 3ª República tem falhado estrondosamente é na Educação.
Não será verdade?
Maldito póquer!
Não sou, nem nunca fui, apreciador dos chamados jogos de mesa.
Reconheço que podem ser um bom entretenimento e, mais do que isso, um bom exercício mental.
Penso mesmo que o xadrez é o único jogo em que o factor sorte não existe. É puramente intelectual ou cerebral ou mental ou racional ou o que lhe quiserem chamar.
Em miúdo ainda joguei alguma coisa, com uns tios, nomeadamente a sueca e outros cujo nome não me recordo. E, curiosamente, com cartas tendo os desenhos usados em Espanha. Bem mais sugestivos, por sinal.
Como adolescente joguei póquer ao tostão. Mas foi sol de pouca dura.
Na tropa, em Angola, aprendi a mexer as pedras no xadrez.
E foi tudo.
De facto, não gosto! Não me perguntem porquê, pois não sei. Deve ser genético. O meu pai também nunca jogava.
Fazendo uma inflexão no discurso, lembro-me de ter lido um conhecido livro de Dostoievsky, “O jogador”, que abordava os problemas psicológicos e comportamentais de um viciado no jogo. Mas pouco mais recordo. Acho que, se tiver oportunidade, ainda o lerei de novo, um dia.
Vem isto a propósito de um antigo colega do liceu, o Zé das Iscas, tipo inteligente e de apurado sentido de humor, alto e sempre com um sorriso no rosto que, desde novo, se habituou a jogar póquer com um grupo de amigos. Faziam-no à noite, em casa de um ou de outro. Eram casas independentes, grandes o que permitia que eles estivessem razoavelmente acobertados dos olhares mais ou menos vigilantes dos pais ou donos das habitações.
E o hábito foi-se tornando vício para alguns. O Zé, ganhador habitual, foi dos que se deixou apanhar.
Mais tarde vim a saber que casara e tinha duas filhas. Não chegou a tirar nenhum curso superior mas tinha um bom emprego. E estava lançado para criar uma empresa própria.
Cheguei a encontrá-lo uma vez, curiosamente no funeral do pai de um amigo comum, teríamos trinta e poucos anos. Estava como sempre: sorridente e mordaz.
Passados dois ou três meses, encontro um velho colega, que me atira:
- Sabes quem morreu?
- Sei lá! – respondi.
- Foi o Zé! O Zé das Iscas! – anunciou o meu amigo.
- Não me digas! O Zé das Iscas morreu? Como foi isso? – retorqui, naturalmente espantado.
- Suicidou-se!
- Oh pá! Até estou zonzo! – fiz uma pausa e continuei – Estive com ele há pouco tempo e estava porreiro. Mas o que é que aconteceu?
- Oh pá! Segundo dizem foi por causa de dívidas de jogo. Deu um tiro na cabeça – concluiu o portador da má nova.
E fora, de facto.
Pela minha parte só posso dizer, descansa em paz, Zé!
Provavelmente alguns de vós conhecereis algum outro Zé que tenha sido vítima do vício do jogo.
Mas há muitos outros, viciados, que não chegam a esse extremo, mas tem que viver de forma bem complicada, na corda bamba, diria eu.
Acho que é caso para mudar o nome à peça:
De "Maldita cocaína!" para "Maldito póquer!".
Terça-feira, 3 de Maio de 2005
Camurço!
O meu pai tinha três irmãos.
Um mais velho, Manuel de seu nome, e dois mais novos, Gilberto e António, sendo este o benjamim.
Já todos faleceram. O último foi o António que morreu no verão passado com 78 anos.
António (ou o tio Tone, como lhe chamava) era o bem disposto do grupo.
Sempre bem humorado, dizer piadas era com ele. Falava pelos cotovelos. E tinha um descaramento, uma total ausência de timidez, que deixava os irmãos muitas vezes embaraçados. Mas não era inconveniente. Tinha o sentido das proporções.
Foi casado, depois viúvo, mas não teve filhos. Meu pai, que nem sempre estava disposto a aturar tanta irreverência, dizia muitas vezes em tom de censura paternal:
- Se tivesses a responsabilidade de sustentar e educar dois filhos, como eu, não andavas sempre com essa boa disposição.
Mas não deixava de lhe achar piada!
Pois o meu tio António também era um portista ferrenho.
E, nomeadamente nos anos 60, muitas vezes ía com o mano Fernando (quero dizer, o meu pai) comigo e com a minha irmã para as bancadas do já desaparecido Estádio das Antas para ver o Porto jogar.
Como vivíamos bem pertinho, chegávamos cedo e sentávamo-nos (ou colocávamos umas almofadinhas) nos degraus de cimento que constituíam a bancada. Havia uns grupinhos que íam para a mesma zona e conversávamos uns com os outros. E não só sobre futebol.
Bom! Há uma correcção a fazer: o meu tio normalmente chegava mais tarde, mas o irmão marcava-lhe o lugar. E quantas vezes já estava a bancada cheia, as pessoas a cobiçarem o lugar do tio Tone, e o meu pai a desabafar:
- Qualquer dia deixo de lhe marcar lugar! Ainda tenho alguma discussão por lhe estar a guardar a almofada. Que raio de homem! É sempre o mesmo!
Mas o António nunca faltava. E mal nos via, com o seu potente vozeirão, característica bem distintiva, berrava:
- Ó Fernando! Já cheguei!
ou
- Ó irmão! Já cá estou!
- Agora põe-se aos berros! Parece que não teve educação! – resmungava o discreto mano Fernando.
Começado o jogo (não sei se já assistiram ao vivo a um jogo de futebol) lá vinham as palmas, os assobios, os incitamentos, os apupos, os impropérios. Uma delícia para um sociólogo. E não só! Minha irmã deleitava-se a apreciar o comportamento da multidão. Era o grande prazer dela.
E os árbitros?
Bom! É bem conhecido que são sempre o mau da fita. Quando o pessoal da bancada achava que ele tinha prejudicado o Porto, parte dele levantava-se e aqueles conhecidos nomes em vernáculo ecoavam durante um pequeno intervalo de tempo.
Claro que o tio Tone ajudava à festa!
Mas, de vez em quando, resolvia fazer o seu solo.
Solo? Sim, solo!
Eu explico!
Quando a multidão vociferava palavrões contra o homem do apito e seus auxiliares (os bandeirinhas, como se chamavam na época), o nosso protagonista mantinha-se impávido e sereno.
Mas quando o bruaá amainava, ele levantava-se e bradava na sua voz de trovão:
- Camurso!
E era ver centenas ou mesmo milhares de cabecinhas a voltar-se para o ponto donde partira o berro.
Quando achava que tinha auditório suficiente, explicava alto e bom som:
- Camurso quer dizer 50% camelo e 50% urso!
E sentava-se calmamente com um irreprimível ar de gozo e perante a gargalhada geral!
Ainda hoje, um velho amigo que algumas vezes assistiu à cena, se refere ao tio como: “o teu tio camurso”.
Segunda-feira, 2 de Maio de 2005
A última viagem (epílogo)
No dia 31 de Março passado escrevi aqui que, uma querida tia, velhinha de 92 anos, estava às portas da morte.
Mas, como lutadora que fora durante toda a vida, ainda durante um mês travou o último combate.
Tinha de perder, já se sabia, mas venceu uma infecção renal. Ganhou a batalha mas perdeu a guerra.
Ontem.
E hoje lá estive, em Vila Praia de Âncora, a acompanhá-la na última viagem.
Mas não podia ter ficado em melhor companhia, a minha tia Bela.
Ficou junto de meu pai e de minha mãe.
Sexta-feira, 29 de Abril de 2005
Bronze nas dunas
O Sr. Américo era um homem dos seus cinquenta e tal anos.
Fanático da praia, costumava ficar numa barraca perto da minha, quero dizer, da minha família.
E como isto aconteceu durante vários anos consecutivos, o conhecimento mútuo surgiu naturalmente.
Além de ser uma defensor acérrimo dos benefícios para a saúde do ar do mar, do exercício físico, dos banhos em água fria (aqui no norte também não era fácil ter água à temperatura da do mar do Algarve), procurava bronzear-se o mais possível (mas com os cuidados inerentes, embora naquele tempo ainda não se falasse no cancro da pele provocado pelo sol).
Pessoa metódica, quasi obstinada, era muitas vezes o primeiro a chegar ao areal. Coisa de que se orgulhava. E brincava connosco, os mais novos:
- Não tem vergonha? Em vez de aproveitarem este iodo e este sol, nas horas em que ele é melhor, bem cedinho, ficam na cama. Que desperdício! Ponham os olhos aqui no velhote!
E fazia todas as manhãs e todas as tardes o seu “cross” pelo extenso areal.
O facto é que era um homem saudável!
O seu gosto em andar bem bronzeado levava-o a ir passar uma meia hora para as desertas dunas onde, estendida a toalha e removido o calção de banho, se comprazia a bronzear as partes que não podia, por decoro, exibir em público.
Mas às vezes o destino é um pouco maldoso e, numa bela manhã, estando o Sr. Américo com o trajo de Adão (mas sem parra) a bronzear as bochechas, ouve um pequeno ruído.
Ah, maldição!
Não é que um corpulento cão, veraneante não habitual por aquelas paragens, resolveu abocanhar o calção de banho do nosso amigo e afastar-se calmamente do local?
O nosso protagonista, atrapalhado como é de calcular, lá começou a chamar o bicho:
- Ó cão! Anda cá! Ó pá! Dá-me cá isso! Então?
Como que a gozar, o cachorro andou um bocado, parou, mirou o nosso herói que nessa altura já se tinha levantado e posto a toalha à volta da cintura (felizmente estava munido de toalha, senão...) e prosseguiu a sua lenta caminhada.
- Ó filho da puta! Dá-me cá os calções!
É o dás! Mais uma paragem. Mais uma olhadela desafiadora. E retomou o percurso para maior irritação do Américo.
Até que, finalmente, e para alívio do banhista, o canídeo largou o troféu.
A cena parece que demorou uma meia hora (eu acho que teria sido menos, mas o tempo psicológico para a vítima do atrevido canídeo foi seguramente maior que o tempo real).
Vestidos os calções, o nosso velho amigo lá regressou à base.
Lá chegado, começou a rir-se, a rir-se, a rir-se...e nunca mais parava.
Até que finalmente narrou a sua aventura de nudista roubado arrancando gargalhadas com fartura.
Já não me lembro bem se voltou a ir fazer bronze para as dunas. Acho que sim, mas certamente tomando algumas precauções suplementares.
Uma coisa é certa: a peripécia deu uma boa história (com um toque de erotismo e tudo), ou não deu?
Segunda-feira, 25 de Abril de 2005
O meu 25 de Abril
A quatro de Fevereiro de 1974 parti para Luanda, a fim de cumprir a parte mais importante do meu serviço militar no NRP Rovuma, como oficial da Armada Portuguesa (NRP = Navio da República Portuguesa). Tropa boa!
O Rovuma era um navio patrulha, fabricado nos estaleiros do Alfeite, se bem me lembro, juntamente com outros da mesma classe e que, por isso, eram iguaizinhos. Ainda navegam.
Tinha uma guarnição de pouco mais de 30 homens, sendo só três os oficiais:
O Comandante Silva Dias, elitista e "bon vivant", casado com a bela francesa Jacqueline, foi mais tarde capitão do porto de Viana do Castelo, como já o havia sido seu pai. Faleceu há dois ou três anos.
O Imediato, Fernando Ribeiro e Castro, jovem oficial do quadro, tinha acabado um ano antes o curso da Escola Naval onde fora considerado o melhor aluno dos últimos vinte ou trinta anos.
Era filho do Governador-Geral de Angola em funções, o Eng.º Santos e Castro que, nos anos sessenta, fora Presidente da Câmara de Lisboa onde ficou conhecido como o Engenheiro dos Viadutos, pois do seu legado fazem parte vários viadutos que na altura foram muito importantes para desanuviar o já então complicado trânsito na capital. Curiosamente, o número dois na hierarquia provincial (ao tempo, as colónias eram chamadas de províncias ultramarinas) era o candidato a Presidente da República apoiado pela Aliança Democrática liderada por Sá Carneiro (que morreria tragicamente no último dia de campanha). Seu nome, Soares Carneiro.
O irmão mais novo do Fernando, por coincidência, foi este fim-de-semana eleito como presidente do CDS-PP. É o Dr. José Ribeiro e Castro.
O Fernando, com quem partilhava o camarote no navio, casou no ano seguinte com uma jovem chamada Leonor e hoje tem nove (leram bem...nove) filhos, sendo o presidente de uma associação de pais de famílias numerosas.
Finalmente, o 3ª oficial, que era este vosso escriba, o único miliciano.
Mas porquê tanta ênfase na pessoa do Imediato do navio?
Porque no dia vinte e cinco de Abril de 1974, quando deixávamos o navio que estava atracado ao cais da Base Naval de Luanda para ir almoçar à messe dos oficiais, ía eu começar a descer a prancha quando o Fernando volta a entrar, com uma cara de espanto:
- Houve um golpe de Estado em Portugal. O Spínola tomou o poder.
Eu fiquei embasbacado, porque um sonho de muitos anos aparecia como realidade. Já não sei o que disse ou deixei de dizer. Lembro-me que não tive grandes manifestações de júbilo, naquele momento, pois ainda demorou um ou dois dias a termos a certeza de que o golpe militar resultara, e até porque havia ocorrido um outro pouco mais de um mês antes, nas Caldas da Raínha, que tinha abortado. Mas também a cara de decepção do Fernando, que resmungava:
- Foi o palerma do Tomás quem estragou tudo. Se tivesse deixado o Marcelo fazer o que queria, isto não teria acontecido. Agora tudo isto vai ser independente. Lá se vai o nosso Portugal!
Dizia eu que a cara do Fernando inibia-me de, por educação, ter manifestações de júbilo.
E lá fomos para a messe. Comecei a falar com os meus amigos ou colegas do reviralho, e conforme íamos sabendo novidades, os sorrisos e as manifestações de alegria começaram a subir de tom. Havia grupinhos e falávamos baixinho. Ainda tínhamos de aprender a viver em democracia e liberdade. Nós, e quasi toda a gente.
Curioso, foi também observar o rosto fechado dos oficiais mais graduados. Não se manifestavam, salvo um ou dois. Mas nos dias seguintes começaram a mostrar um sorriso que deixava adivinhar que, ou já eram opositores do regime e estavam a ver em que paravam as modas, ou eram a favor e estiveram de quarentena a mudar a casaca! Alguns não mudaram. Honra lhes seja feita!
E o meu 25 de Abril foi assim!
Sem cravos nem multidões, lá longe, na África meridional.
Parabéns para os que conseguiram chegar ao fim deste texto chatinho, mas pelo menos não escrevi as banalidades do costume. Procurei dar uma imagem com algum ineditismo. Consegui?