Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Sábado, 3 de Setembro de 2005
Diplomacia no Rivungo
Nota prévia:
Este texto baseia-se em mais um episódio ocorrido durante a minha permanência de dois meses (Outubro e Novembro de 1974) como comandante interino do Destacamento de Marinha do Cuando, localizado no Rivungo, Cuando-Cubango, Angola. É o quarto desta série. Antes, coloquei em exibição:
“Sobrevoando a savana” em 01 de Junho de 2005
“O cortador de carnes verdes” em 18 de Junho de 2005
“Cena de caça no Bambangando” em 17 de Julho de 2005


 
Estava uma manhã esplendorosa, com um sol quente e brilhante quando, por volta das dez horas, um dos meus homens me veio chamar ao pequeno aquartelamento:
- Sr. Tenente! Sr. Tenente! A Rosa vai ter um filho. Já lá está a Maria Cangonga e outras mulheres.
- Sim? – interroguei-o, num tom preguiçoso.
- Então vou lá! Diz ao sargento Gomes que, se for precisa alguma coisa, estou na cabana da Rosa – concluí.
Levantei-me da cadeira onde saboreava aqueles apetitosos raios solares e dirigi-me para uma das cubatas do quimbo mais próximas de nós. Era onde vivia a Rosa.

Mas quem era a Rosa?
Como já disse em textos anteriores, eu tinha ido para o Rivungo para lá ficar somente durante um mês, período de férias do comandante efectivo, tenente Taborda. Mais tarde, recebi a ordem para proceder ao desmantelamento da unidade e regressar a Luanda, pelo que acabei por ficar mais quatro semanas.
O Taborda estivera lá cerca de quatro meses.
Antes dele, o comandante durante dois anos fora o tenente Vieira.
Quando, ainda antes de encetar a viagem para aquelas terras esquecidas, o Vieira soube que eu iria para lá, veio falar comigo e disse-me:
- Ó Castilho! Eu, no Rivungo, vivia com uma rapariga chamada Rosa numa cabana que mandei construir. Quando me vim embora ela estava grávida. O que eu te peço, como já fiz ao Taborda, é que quando nascer o meu filho ou filha o registes como meu e com o apelido Vieira.
- E a Rosa é negra, calculo! – perguntei desnecessariamente.
- É, mas é uma rapariga porreira, muito meiga, a quem eu também andava a ensinar a ler.
- Certo, Vieira! Não me esqueço – prometi.
- Ah…e que nome queres para eles? – interroguei-o.
- O dos pais. Luís se for rapaz, Rosa se for rapariga – disse o meu camarada após pensar uns momentos.
A Rosa devia ter mel, pois o Taborda também foi viver com ela quando para lá foi, como pude verificar quando cheguei ao local.
Era uma negra de tom claro, bonita, mas um pouco estragada devido ao avançado estado de gravidez.

Voltemos àquele dia de princípio de Novembro.
Cheguei junto da cubata e perguntei se tudo corria bem. Disseram-me que sim.
Uma curiosidade que gostaria de satisfazer era se, como me tinham dito, os negros recém-nascidos ainda não tinham essa cor de pele. Teriam uma tez branca mas bastante mais avermelhada que os europeus.
Esperei cá fora, sentado no chão, quando apareceu de novo o grumete:
- Sr. Tenente! Estão ali dois tipos pretos, com uma farda e com pistola, que pretendem entregar uma carta ao comandante do barco.
Fui ver os homens, intrigado.
Apresentei-me, e um deles, num português com sotaque africano, pediu-me para ler a missiva que ao mesmo tempo me entregou.
O envelope tinha um carimbo circular que dizia:
MPLA – A vitória é certa.
- Vocês são do MPLA? – indaguei.
- Somos. Mas do grupo da Revolta do Leste. O nosso chefe é o Daniel Chipenda. O Agostinho Neto tem tomado muitas posições de ditador e nós queremos democracia.
Já tinha ouvido falar dessa cisão no MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola.
Daniel Chipenda fora um dos homens mais influentes do grupo mas tinha fomentado uma separação relativamente ao grupo original e principal liderado, desde a fundação, pelo Dr. Agostinho Neto.
Lembro-me dele sobretudo como jogador de futebol da Associação Académica de Coimbra. Nessa cidade estudara, mas interrompera o curso para ir combater com a guerrilha angolana.
Abri então o envelope e li o papel manuscrito que estava dentro dele.
Era um convite para irmos, no dia seguinte, com o navio (a Lancha de Desembarque Pequena de que já falei noutros textos) buscar um conjunto de guerrilheiros para os trazer para o Rivungo onde pretendiam fazer trabalhos de politização das massas.
Pedi um ou outro esclarecimento e resolvi chamar o Neto para mandar uma mensagem ao Comando Militar do Luso (agora Luena) do qual dependíamos operacionalmente e outra ao Comando Naval de Angola a quem estávamos ligados logisticamente.
Assim foi feito. Nelas pedia que me dissessem qual a decisão: ir ou não ir!
Enquanto aguardava resposta, pensei que talvez ela não viesse em tempo oportuno e resolvi marcar uma reunião para depois de almoço com as forças vivas da terra. Estariam presentes, além de mim, o alferes Monteiro, comandante do destacamento do Exército, o chefe da PSP, o chefe da PIDE e também deveria estar o administrador de posto, Sr. Lebre, mas tinha voado para Serpa Pinto (agora Menongue) na semana anterior e voltaria nesse dia, mas mais ao fim da tarde.
O objectivo era preparar uma decisão para o caso de não termos retorno do pedido feito às hierarquias.
Fui pessoalmente falar com cada um e expliquei-lhes a situação.
Também achei por bem dar conta das minhas actividades aos “terroristas” para lhes incutir confiança.
Inicialmente pareciam-me um pouco receosos. Mas depois de falar com eles fizeram um daqueles sorrisos muito brancos como quem diz:
- Está a correr bem! Não vamos ter problemas.
De repente lembrei-me:
- A Rosa!
Corri para a cubata e lá estava a moça com uma menina nos braços. Tinha corrido tudo bem.
De facto não era negra, tinha uma coloração avermelhada.
Fui falar novamente com o Neto:
- Há resposta?
- Nenhuma, Sr. Tenente! – retorquiu o radiotelegrafista.
- Então repete as mensagens. E enquanto não vier nada, manda duas de hora em hora; uma para cada lado – ordenei.
Eram duas e meia da tarde quando começou a reunião.
Fui o primeiro a falar:
Rememorei o que se tinha passado até aí. Sugeri que, se não houvesse ordens específicas das hierarquias até às seis da tarde, tomássemos nós a decisão. E avancei com a minha proposta:
Atendendo ao que se estava a passar em todo o território angolano (e convém recordar que recebíamos o Expresso todas as semanas) uma recusa seria considerada uma atitude hostil pelos outros. Pelo contrário, e como a tendência era a de deixar as colónias com brevidade, parecia-me correcto que os homens viessem fazer os seus contactos com a população.
Os outros concordaram, excepto o tipo da PIDE, o Roque, que parecia ainda não ter percebido que as coisas estavam a mudar rapidamente e apresentou os mesmos argumentos salazaristas de “Angola é nossa” e outros que tais.
Curiosamente, fui sentindo ao longo da reunião aquilo que já tinha lido e estudado numa cadeira de Sociologia: que “a multidão segrega o líder” e, ali, era eu que emergia como o líder. Todos concordavam com praticamente tudo o que eu dizia (excepto o Roque, claro).
A certa altura chamamos os dois homens do Chipenda para combinar os detalhes para o dia seguinte. Tudo ainda pendente da resposta do Luso ou de Luanda.
Por volta das cinco chegou o Lebre. Alinhou também com as minhas posições.
Mandei chamar três dos meus subordinados: o sargento Gomes, o cabo Zé Castro e o João Correia para os pôr ao corrente da situação, pois era o destacamento da Marinha quem teria a parte mais importante na acção.
No entanto, o alferes Monteiro fez questão de também seguir a bordo no dia seguinte. Não me opus.
Eram seis da tarde.
- Ó Correia! Fazes-me o favor de ir perguntar ao Neto se veio alguma resposta? – pedi ao artilheiro.
Passados poucos minutos regressou o João:
- Não disseram nada, Sr. Tenente! Não nos ligam nada! Eles nem sabem que este buraco existe – resmungou o marinheiro.
- Pronto, meus senhores! Avançamos com a nossa decisão. Concordam? – perguntei em tom de fim de conversa.
Todos responderam afirmativamente excepto o “pide”. Disse que estávamos a cometer um grande erro e retirou-se.
Avisamos os da guerrilha que, depois, se foram embora.
Na manhã seguinte iríamos na nossa LDP pelo Cuando até um determinado ponto onde os antigos inimigos estariam à nossa espera.

Partimos às oito. Só o Neto, o sargento, o Lima e outro grumete ficaram em terra. Cobrimos a metralhadora
Oerlikon, a única arma pesada que havia a bordo, com um pano branco e o João ficou de se meter debaixo dele quando estivéssemos perto do local onde a lancha abicaria. Todos tínhamos armas, mas escondidas. Atamos um pano branco a uma vassoura para acenarmos, dando assim sinal de que a nossa presença era pacífica.
Ao fim de cerca de uma hora e meia de navegação, estávamos bem perto do local combinado.
De repente avistamos dois homens. Começamos a agitar o pano da vassoura.
O João escondeu-se com a arma preparada para fazer tiro de rajada.
Dei ordem ao cabo Zé para abicar.
Paramos.
Já havia cinco ou seis tipos à vista.
Mandei baixar a prancha da frente da lancha. Atravessei-a e fui para terra. Seguiram-me dois homens. Aquilo já era território zambiano.
De repente já não eram cinco nem dez, nem quinze.
Estariam ali uns vinte "inimigos" ("ex-inimigos", felizmente). Mais tarde disseram-me que escondidos estariam mais uns trinta polícias da Zâmbia para ripostar em força, caso tivéssemos uma atitude hostil. Mas nós tínhamos a noção do risco que corríamos. Portamo-nos bem.
Cumprimentos, abraços, sorrisos, e foram embarcados dez homens. Eles queriam que fossem vinte, mas entendi que seria gente a mais. Comprometi-me a vir buscar mais dez passados cinco dias. Era preciso saber como as coisas iriam correr no Rivungo.
O chefe do grupo era um rapaz novo, uns vinte anos, dono de um olhar vivíssimo com aquele brilho que só as pessoas muito inteligentes tem. E era dinâmico, também. E sensato. O nome de guerra era comandante Cow-boy. Falava bastante bem português. Uns meses mais tarde, já em Luanda, li num diário que fora morto aquando de um ataque da UNITA ao posto do MPLA de Serpa Pinto, no qual se encontrava. Tive pena do rapaz!
Mas havia um problema a resolver.
Os “turras” estavam todos armados com uma Kalachnikov, a metralhadora soviética exportada para todo o mundo. Um deles tinha um lança-foguetes. Só o chefe tinha uma pistola. Vestiam uma farda verde-azeitona escura (não sei se existe esta cor mas acho que dá para imaginar). Nós estávamos com camuflados e G3´s. Eu tinha também uma pistola Walter. Ainda tenho uma foto com uma Kalach e ao meu lado o comandante do grupo com a minha G3.
Chamei de lado o Cow-boy e disse-lhe:
- Caro amigo! Há uma situação que é de alto risco. Se vocês forem armados para o Rivungo, estando-o nós também, a possibilidade de haver tiroteios é enorme.
Ele escutava-me com toda a atenção. Os olhos bem abertos. Estava a perceber tudo, por isso continuei:
- Proponho-lhe uma coisa: quando chegarmos à aldeia, vocês entregam-nos as armas que ficarão guardadas no paiol da Administração de Posto. E porquê vocês e não nós? Porque ainda é Portugal que detém a soberania sobre Angola. No dia da independência ou antes, se nós nos retirarmos de cá, o que é o mais provável, as armas ser-vos-ão devolvidas e a segurança será da vossa responsabilidade. Até lá, será nossa.
O jovem negro fez uma longa pausa.
Claramente não estava à espera daquela proposta.
Mas eu não tinha dúvidas, como aliás se provaria mais tarde, que tinha razão.
E, felizmente, o rapaz teve o bom senso de perceber bem a gravidade do problema e respondeu:
- Sim! Estou de acordo.
Eu respirei fundo e ele, quasi imediatamente, começou a falar com os seus homens sobre a nossa decisão.
A viagem demorou outra hora e meia (como seria de esperar, já que o rio pouca corrente tinha). Foi animada com conversas, fotografias, risadas, vivas a Angola e a Portugal.
Um “turra”, no entanto, desde o início da viagem que vinha a ler um livro fininho, muito concentrado e sem entrar na animação geral. Aproximei-me dele e perguntei-lhe o que estava a ler. Sorridente nos seus dentes brancos mas desalinhados, mostrou-me uma gramática de português e comentou numa linguagem dificilmente entendível:
- Para falar com o povo preciso de saber bem português.
Fiquei tocado. Dei-lhe uma palmada nas costas e disse:
- Fazes muito bem! Continua!
Quando chegamos ao Rivungo, uma multidão estava à nossa espera. Nem sei donde saiu tanta gente nem como a notícia se propagou tão velozmente. O administrador Lebre entrou para a lancha e deu as boas vindas como entidade civil mais destacada (a malta pensou em tudo).
Logo lhe disse que fosse abrir as portas do paiol para guardar o armamento “terrorista”.
Pedi ao Cow-boy para seguirem o Sr. Lebre e depois ele arrumaria as armas e ficaria com as chaves.
Como disse, esta decisão foi de grande importância. Alguns dias mais tarde, e sobretudo depois de ter vindo o segundo grupo, alguns menos garbosos guerrilheiros começaram a beber uns copitos a mais e, sobretudo à noite, lançavam frases provocatórias para os meus homens que estavam de sentinela. Sim! As medidas de segurança começaram a ser levadas mais a sério.
- Sr. Tenente! Estes filhos da puta estão a provocar-me e a insultar Portugal! Eu ainda lhes mando uma rajada que os fodo a todos!
- Calma, Nunes! Lembra-te que eles estão desarmados e tu estás armado. Tens de ter auto-controle – disse, procurando sossegar o moço.
- Tem razão, Sr. Tenente, mas às vezes quasi que me passo.
Felizmente os conflitos não passaram deste e de alguns casos similares. O meu argumento era sempre o mesmo.
Voltando ao dia da chegada com os dez guerrilheiros a bordo, o Cow-boy perguntou-me se podia fazer uma sessão de politização (era a expressão usada) para a população, na manhã seguinte. Pediu-me também para improvisar um palanque.
Aceitei! Pois se eles tinham querido ir para lá fazer propaganda…
Estive a assistir ao comício que tinha imensos assistentes. As palavras proferidas foram sensatas e propícias a gerar um bom ambiente. Fiquei satisfeito.

Passadas umas duas semanas sobre este acontecimento, e em mais uma luminosa manhã de Novembro, começou a ouvir-se um barulho estranho. A pouco e pouco esse ruído foi-se aproximando até que alguém gritou:
- É um heli!
E poisou no ponto de encontro das duas “avenidas” do Rivungo. De lá saíram um oficial da Marinha que eu conhecia da Messe dos Oficiais e um do Exército.
- Foi daqui que mandaram uma mensagem a perguntar se podiam ir buscar uns soldados do MPLA? – perguntou o capitão-de-fragata.
- Sim! Fomos nós! Mas a questão foi resolvida nesse mesmo dia. Não havendo ordens superiores, decidimos nós o que fazer. Estão a ver aquele homem ali? E aquele acolá? E aqueles dois junto daquela casa? São guerrilheiros! – disse num tom firme.
- E tem corrido tudo bem? Quantos homens estão cá? – perguntou o major do Luso.
- Está tudo controlado. Trouxemos vinte – retorqui.
Mais um bocado de conversa, uma voltinha pela terreola, uma ida ao destacamento onde ninguém estava com farda.
- Peço desculpa de ninguém estar fardado, mas as condições climatéricas aqui recomendam que as pessoas andem mais à vontade – procurei justificar-me.
- Não há problema nenhum – disse o visitante da Armada.
Mais umas tretas e lá se foram com a missão cumprida.
- Quinze dias depois! – rimo-nos todos com a eficácia dos superiores.
Deixem-me fazer um aparte para dizer que o oficial de marinha que nos foi visitar nunca chegou a regressar a Portugal. Uma noite, em Luanda, foi assassinado com dois tiros nas costas. O corpo só foi encontrado na manhã seguinte. Questões de saias com mulatas, foi o que constou. Era casado e tinha uma filha que eu conheci pois toda a família estivera bastante tempo em Luanda.

E com esta conversa toda esqueci-me da Rosa. Ou melhor, não esqueci, pois uns dias depois da chegada dos “turras” fui falar com o Lebre para se registar a bebé como filha do tenente Vieira.
- Ó Sr. Tenente! É melhor esperar mais algum tempo para vermos se a rapariga é mulata. Pode não ser filha dele.
Eu ainda tentei rebater o administrador, mas ele estava tão renitente que cedi.
E acabou por nunca mais ser feito o registo. Não sei se isso ajudou ou prejudicou a Rosa e a filha nos meses e anos que se seguiram. Ou se foi indiferente. Mas ainda hoje tenho a desagradável sensação de não ter cumprido uma promessa.

Finalmente, em finais de Novembro, chegou um camião para nos levar de regresso a Luanda.
Fizemos uma pequena cerimónia de arriar a bandeira, já bastante rota e debotada, despedimo-nos da malta do Exército, do Lebre, dos agentes da PSP, do outro “pide”, que o era para ter emprego e não por convicção, da miudagem, enfim…um pouco comovente.
Uma velhinha que me lavava a roupa todas as semanas chegou-se a mim a chorar e disse:
- Sr. Tenente! E agora o que vai ser de nós sem a tropa portuguesa?


publicado por António às 16:10
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