Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Sábado, 28 de Maio de 2005
Eu, assassino
Ano de 1958.
Vivia eu na zona das Antas, bem perto do desaparecido estádio.
Andava na 3ª classe.
Um dos meus colegas era o Renato, filho único do Sr. Serafim e da D. Laura que moravam bem pertinho da escola.
Esta família era bem nossa conhecida pois costumava ir veranear para Vila Praia de Âncora, alojando-se no hotel de minha tia Bela (na altura pensão).
Era de lá que os conhecíamos.
Chegado a este ponto, não quero deixar de vos chamar a atenção para dois aspectos:
O primeiro, o de esta narrativa ser absolutamente verídica, inclusivamente os nomes utilizados. Fiz essa opção, desta vez.
O segundo, é que se estão a contar com uma novela policial, bem podem tirar o cavalinho da chuva. Nesse tipo de literatura o assassino só se descobre no fim, depois de o autor ter posto o leitor a suspeitar de quasi todas as personagens. Não posso deixar de recordar os imensos romances que li da famosa Agatha Christie em que o Hercule Poirot ou a Miss Marple, nomeadamente, me faziam só largar o livro depois de ter chegado ao fim.
Mas, neste caso, não há nenhum suspense. Já sabem quem foi o assassino.
Fui eu!
Vamos então à história propriamente dita:
Durante uma certa semana, o Renato não apareceu nas aulas. Estará doente, pensei. Chegou a sexta-feira e, mal entrei no edifício escolar, comecei a ouvir:
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
- Morreu o pai do Renato!
Logo fiquei bem aborrecido pois, saber assim de supetão da morte de uma pessoa conhecida, e sobretudo com nove anitos, não deixa de ser um tanto traumatizante.
A aula decorreu de forma um pouco esquisita, pelo menos foi o que me pareceu e, terminadas as lições do dia, fui para casa almoçar.
A minha mãe abriu-me a porta e eu disparei de imediato:
- Ó mamã! Morreu o pai do Renato!
- O Sr. Serafim? Não me digas! Como é que soubeste?
- Toda a gente na escola falava disso.
- Coitado! E de que é que morreu?
- Ouvi dizer que tinha sido de leucemia – apliquei-me a dizer uma palavra tão cara e que me dera algum trabalho a decorar.
- Ah! Realmente ele sempre teve uma cor muito macilenta – comentou, inteligentemente, a mamã.
Passados uns minutos chegou o meu pai.
- Ó rapaz! E sabes quando é que ele faleceu? – perguntou-me ele.
- Ouvi dizer que na 5ª feira. E o enterro foi hoje de manhã.
- Então já foi o funeral! Agora só nos resta ir apresentar as condolências à viúva – decidiu rapidamente o papá.
- E temos de avisar as pessoas – decidiu, de novo rapidamente como era seu hábito.
E assim, a infausta notícia, ao início da tarde de sexta-feira propagou-se velozmente.
Telefonema para aqui, telefonema para ali, ficou combinado que no domingo seguinte, depois do jogo do Porto, o Sr. Oliveira, amigo de ambas as famílias e que também ía a banhos para a vila minhota onde minha mãe nascera, bem como o meu primo Zé, segundo filho da minha tia Bela que estava a estudar Economia (melhor seria chamar-lhe Gastadoria), viriam ter a nossa casa para depois irem os três a casa do Renato apresentar os pêsames à viúva.
E assim chegamos a domingo.
Pouco antes da hora de comer, tocou a campainha.
Era o Zé. Grande calmeirão, um verdadeiro “senhor-de-não-te-rales” que quando ficava atrapalhado gaguejava um pouco. Vinha, como habitualmente aos domingos, almoçar connosco.
Aberta a porta, disse ele:
- Sabem que ontem à tarde ia morrendo de susto? – solavanqueou .
- Mas porquê? – perguntou o pai.
- Vi o morto a passear em Santa Catarina – desabafou o coitado, ainda visivelmente afectado pela visão de um morto-vivo.
- Mas como é possível? Ele está vivo? Tu tens a certeza que ouviste bem? – atirou-me o pai com cara de poucos amigos.
- Ouvi! Todos diziam “morreu o pai do Renato”.
- Bom! Vamos tirar isso a limpo. Ó mulher! Chega-me daí a lista telefónica! – ordenou o chefe da família.
E passado um pouco, estava o meu pai a falar ao telefone com o morto-vivo, arranjando um pretexto qualquer para tão inopinado contacto.
Enfim, estava tudo esclarecido!
Tudo, não! Afinal porque é que toda a malta da escola dizia que tinha morrido o pai do Renato? Isso já seria mistério para eu desvendar.
O resto do dia decorreu com a normalidade de um domingo de futebol. O Porto ganhou, o que era sempre bom para os humores estarem do lado positivo,
Ah…já agora fiquem a saber que o Sr. Oliveira não tinha sido avisado de que o morto afinal estava vivo, pelo que depois do jogo apareceu vestido de escuro e gravata preta.
- Ó amigo! Afinal o Serafim está vivo! – informou o meu progenitor.
- Como? – balbuciou o Oliveira com a maior cara de parvo que se pode fazer.
E lá lhe contaram a história.
Afinal, a “morte” do Serafim tinha dado azo, não a uma romagem a casa da "viúva", com lágrimas e lamentações, mas a umas boas risadas.
Na segunda-feira, perguntei a uns colegas se o pai do Renato Nuno sempre tinha morrido. Não! Afinal tinha sido o de um outro Renato, de que eu nunca ouvira falar e que vivia numa área um pouco afastada da minha casa, mas que era bem conhecido de muitos alunos que viviam para esses lados, embora ele fosse mais velho e não andasse naquela escola.
Estão agora a perceber como é que eu, durante quasi quarenta e oito horas, fui o “assassino” de um pacato cidadão?
Segunda-feira, 23 de Maio de 2005
A tísica
Uma peripécia que ouvi a meu pai, várias vezes, passou-se no Porto do final dos anos 30, início dos anos 40.
No tempo em que os rapazes e mesmo alguns cavalheiros, íam para o passeio d’ ”A Brasileira”, mesmo ao fundo da rua de Sá da Bandeira, onde havia uma paragem dos eléctricos.
E os malandrecos estavam lá para conversar? Sim! Mas também à espera que as meninas subissem para o velho transporte citadino e deste modo poderem ver-lhes o tornozelo. Leram bem! O tornozelo! De facto, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Por essa altura, seria o meu pai um adolescente ou pouco mais do que isso, mas trabalhava desde os 9 anos pois a vida fora-lhe madrasta. E como o fazia na baixa portuense podia também apreciar essas “impúdicas” exibições.
Mas era também o tempo da tuberculose.
Doença terrível, que já vinha, há muitos anos, dizimando famílias, por vezes inteiras, sem escolher condição social e económica, tal a facilidade de transmissão do bacilo de Cock, sua causa.
Não sei exactamente quando foi descoberto o melhor tratamento e, sobretudo, a vacina contra a epidémica maleita. Penso que por essa altura já o teria sido. Mas a implementação de um sistema de profilaxia e vacinação não se fazia de um dia para o outro.
E mesmo com o sistema em funcionamento, muita gente continuou a viver com o medo de apanhar uma tísica.
Era o caso de um tal senhor Menezes, pessoa de meia idade, sempre vestido a preceito, terno, gravata e o respectivo alfinete, relógio de ouro com corrente guardado no bolso do colete, emblema na lapela, sapato brilhante de graxa bem polida, bigodinho bem aparado, polainas e ceroulas no inverno e o imprescindível chapéu, colocado a preceito, que era ligeiramente levantado da cabeça para cumprimentar alguém conhecido, como complemento de uma vénia, de acordo com as regras da etiqueta.
Pois o Menezes, que constava ser homem de posses e vivendo dos rendimentos, era pessoa bem conhecida e muito cumprimentada.
Mas, não sei se por hipocondria ou não, tinha verdadeiro pavor de contrair tuberculose.
E como lutar contra semelhante praga quando as pessoas estavam constantemente a estender-lhe a mão para um caloroso aperto?
Ah, Menezes cuidadoso...
Um frasquinho de álcool no bolso do casaco e, após uma bacalhoada, discretamente, uma desinfecção das mãozinhas.
Outro aperto de mão, outra desinfecção.
Discreta, muito discreta, pois não podia ser visto sob pena de tal gesto ser considerado ofensivo para os cumprimentadores.
Claro que muitos o viam, incluindo o meu pai.
Mas a realidade é que o cavalheiro lá ía evitando a maldita doença.
Um dia, o meu progenitor lembrou-se de que não via o Menezes há algum tempo. Resolveu perguntar a pessoa do seu conhecimento que era feito do senhor.
- Morreu, coitado!
- Sim? E de quê?
- De tuberculose!
Sexta-feira, 20 de Maio de 2005
As putas de Amsterdam
Dans le port d´Amsterdam
Y a des marins qui boivent
Et qui boivent et reboivent
Et qui reboivent encore
Ils boivent à la santé
Des putains d´Amsterdam…
(Jacques Brel)
Já vos falei da viagem do meu curso de uma forma genérica.
E prometi contar-vos umas historietas. Eis uma delas:
Já na fase descendente do trajecto e após uma semana na Alemanha, chegamos finalmente a Amsterdam. Era um dos momentos mais esperados. A grande cidade era, na altura, o maior centro do movimento hippie na Europa. Algumas semanas antes, a praça central – o Dam – estava inundada por centenas ou milhares dos bizarros pacifistas. De tal modo, que o governo local vira-se na necessidade de os mandar sair dali. Como a ordem não tivesse sido acatada, uma intervenção da polícia à mangueirada tinha provocado o efeito pretendido.
Apesar de tudo, chegados ao hotel, cumpridas as formalidades habituais, atribuídos os quartos e arrumadas as coisas, lá fui com um grupo mais ou menos numeroso até ao Dam. Hippies, nem vê-los.
Mais umas voltinhas pela zona central, os colegas vão dispersando e acabamos juntos quatro mariolas. Eu, o Jacinto, o Afonso e o Domingos.
- Malta! – disse o Jacinto – Vamos até à “zona”?
- Siga! Temos de perguntar o caminho – apoiou um dos outros.
- Jantamos por lá! – sugeriu o sempre esfomeado Jacinto.
A “zona”!
Finalmente íamos ver a famigerada “zona” de Amsterdam.
O local de concentração da legalizada prostituição. Ficava perto do Dam.
Quando lá chegamos ainda era dia. Ao longo de dois canais, cada um deles ladeado por duas ruas ligadas por velhas pontes, numa extensão de 200 ou 300 metros, e com outras veredas, transversais, a fazerem a ligação entre os canais, estendia-se o casario típico das velhas construções dos Países-Baixos.
Mas, o que era verdadeiramente surpreendente eram as janelas de vidro único dessas casas: dentro de cada uma delas estava um mini quarto, ocupado por uma meretriz parcamente vestida, com uma pequena cama, almofadas, cadeira ou sofá, enfim, o necessário para tornar a entrada apetecida aos transeuntes mas carenciados. Nas ruas andavam principalmente turistas. Homens e mulheres, novos e velhos.
Havia ainda umas sexy-shops e umas casas de strip-tease que viemos a verificar serem bem foleiras.
Mas o centro das atenções eram as mulheres em exibição. A maioria novas, elegantes e bonitas. Também havia uns camafeus, mas poucos. Bastantes negras. Mas as loiras predominavam.
Completamente embasbacados, os quatro demos uma volta de reconhecimento e decidimos ir comer qualquer coisa. Rapidamente, pois queríamos voltar aos canais.
E por lá andamos até à meia-noite ou perto disso. Depois, a fadiga da viagem levou-nos para a cama.
Mas na noite seguinte, ainda em Amsterdam, voltamos para a “zona”. Os quatro. Outros colegas andavam por lá, alguns com as namoradas que ao longo da viagem tinham aprendido a encarar estas coisas com muito “fair-play”.
Entretanto, tivemos oportunidade de apreciar alguns clientes a entrar. Imediatamente uma cortina corria e impedia qualquer espreitadela de sexo ao vivo. Cronometramos. As sessões eram rápidas. Dez a quinze minutos. Perguntamos o preço: cinquenta marcos alemães (pois...moeda forte) que valiam na altura (fins de Março de 1972) cerca de quatrocentos escudos.
Mais umas voltinhas e o Afonso arrasou:
- Vou entrar!
- Força, pá! – dissemos nós.
Meu dito, meu feito. O arrojado portuga, com o seu ar bem parecido, entrou por uma das portas e foi para um quarto. Fechou-se a cortina. Começamos a cronometragem.
Cinco minutos. Dez minutos. Quinze minutos. Vinte minutos.
- Porra! O gajo é do caraças! – comentou um de nós.
- Os portugueses são assim – ironizou outro.
- O certo é que não vimos ninguém a demorar tanto tempo – comentei eu.
Ao fim de quasi meia-hora sai o nosso comparsa.
Mão nos bolsos do elegante sobretudo (as noites estavam frias) e um sorriso nos lábios.
- Então, pá? Conta lá isso!
- Tintim por tintim...
- Foi porreiro – disse o nosso herói.
- Mas como conseguiste aguentar tanto tempo?
- Vocês não sabem que eu sou bom? – gabou-se o Afonso.
E fomos caminhando.
A certa altura, o valentão parou e assim falou:
- Tenho de vos confessar uma coisa. Paguei...e não fodi!
- Como? – dissemos em coro – Então que aconteceu?
E o pobre Afonso lá nos contou que entretanto apareceu outra prostituta que, aparentemente, lhe dizia que tinha de pagar mais um tanto e ter relações com as duas, porque não podia ser só com uma, porque...porque...e depois falavam uma língua que não percebia. Até que entrou um homem. Aí, o nosso amigo é que não gostou mesmo nada da cena e acabou por sair.
- Mas pelo menos apalpei uma mama à gaja! – rematou com ar conformado o nosso ex-herói.
Segunda-feira, 16 de Maio de 2005
traz outro amigo também
Quando foi publicado o álbum “traz outro amigo também” do José Afonso, nos finais dos anos sessenta princípios dos setenta, o meu grande amigo Berto, um dos tipos mais inteligentes e mais cultos que conheço (então estudante na FEUP e actualmente no nível abaixo de catedrático de Engenharia Civil e projectista de vias de comunicação rodoviárias), não resistiu a comprá-lo.
Não era propriamente um revolucionário, mas tudo o que considerava ter qualidade, agradava-lhe. Ainda hoje é assim.
Seu pai, arquitecto talentoso e amante dos livros e da música, tinha uma biblioteca e uma discoteca de discos clássicos que davam gosto. Muitas vezes ouvi obras de grandes compositores na sua casa. Desapareceu da nossa companhia precocemente, quando ainda caminhava para o sucesso e reconhecimento público que merecia.
Pois quando o Berto chegou, depois de ter adquirido o LP, encontrou na sala o pai com um amigo.
Muito satisfeito, exibiu o disco como um troféu e falou dele como de uma obra-prima.
O professor, pois o pai também tinha essa actividade, perante tantas loas, não se conteve:
- Mas quem é esse tipo? Dizes que também é poeta? Ora, poemas desses também eu faço. Ou ainda melhores – e lançou um olhar de gozo ao amigo, que concordou.
- Ó pai! Estás a falar e não ouviste o disco. Portanto, estás a falar do que não sabes.
- Já ouvi esse tipo a cantar na rádio. Não o queiras comparar aos que são verdadeiramente talentosos, como o Camões, por exemplo. Pode ter uma voz agradável e algumas músicas com boa sonoridade, mas…
- Olha, pai! Neste disco, está uma canção cuja letra é um poema de Camões e as outras são quasi todas feitas com poemas do José Afonso.
E lançou o desafio:
- Eu ponho o disco a tocar e tu, e o Sr. Eng. também, no fim dizem qual dos poemas é do Camões. Reconhecem que o Camões é um poeta fora de série, não é verdade?
E esperou, com o ar mais sério do mundo a resposta ao repto que habilmente lançara.
O arquitecto hesitou um pouco. Mas não tinha alternativa, e anuiu. O amigo também.
E o Berto colocou o disco no prato do aparelho e sentou-se.
- Mas não digo os títulos – sentenciou o meu colega.
- Ah! As músicas também são quasi todas da sua autoria – esclareceu.
E vão passando sucessivamente:
“Traz outro amigo também”
- Hum…não me parece Camões. Podes eliminar.
“Maria Faia” (uma canção popular da Beira – Baixa)
- Esta não! Podes avançar!
“Canto Moço”
- Essa não elimines, para já!
“Epígrafe para a arte de furtar” (sobre um poema de Jorge de Sena)
- Hum…aguenta essa!
“Moda do Entrudo”
- Isso não! Passa à seguinte!
“Os eunucos”
- Essa também não! A seguinte!
“Avenida de Angola”
- Isso não é Camões!
“Canção do desterro”
- Aguenta essa! Muitas alusões ao mar!
“Verdes são os campos” (a que tinha como texto um poema de Camões)
- Essa tem laivos da lírica camoniana. É capaz de ser essa!
“Carta a Miguel Djéjé”
- Podes passar! Essa não é de certeza!
“Cantiga do monte”
- Não é má! Mas podes eliminar!
(todas aquelas em que não mencionei o autor tinham poemas do Zeca)
- Então pai? Ainda tens de optar por quatro.
- Põe essas outra vez – ordena o arquitecto.
E o Adalberto lá fez tocar as que não tinham sido eliminadas.
Terminada a segunda sessão, o pai ainda hesitava entre a realmente camoniana e o “Canto Moço”.
- Bom! – disse – é a dos campos verdes.
- É, pai! Mas, afinal, não há assim uma diferença tão grande entre o José Afonso e o Camões! – disparou o jovem com um sorriso mordaz.
- Ora! E esse gajo era capaz de escrever os Lusíadas ou compor a Nona?
- Se calhar fazia melhor! – murmurou entre dentes o Nando.
E agora vão ouvir o disquinho, está bem?
É dos melhores do Zeca, na minha opinião.
Sexta-feira, 13 de Maio de 2005
A viagem de curso
Nas férias da Páscoa de 1972 (reparem bem que foi antes de 1974 e, portanto, em plena época marcelista, da Guerra Colonial e da censura, entre outras coisas), trinta e três alunos finalistas do curso de Engenharia Química da FEUP (mais um professor), efectuaram a chamada “viagem decurso”.
Sem esquecer o motorista, peça fundamental da engrenagem – o Sr. Vendas.
Eu era um dos membros da Comissão Organizadora (só organizar uma coisa destas deu cá um gozo! …) que sempre se mostrou muito competente (pois… a gente também ía! …).
Esta viagem de autocarro através da Europa, na altura tão distante e tão inacessível (o regime não autorizava os rapazes em idade pré-serviço militar a saírem do país) foi, sem dúvida, um momento absolutamente inesquecível da minha vida.
Este texto é, fundamentalmente, um intróito que tem como objectivo primário gabar-me, fazer-vos podres de raiva e meter nojo e, como fim subsidiário, dar-vos uma ideia do enquadramento geral em que se passaram algumas historietas relacionadas com a passeata e que futuramente, se bem que ao sabor do imprevisto, aqui irei contar.
Foram vinte e quatro dias espantosos, a ver coisas de que ouvíramos falar, sobre as quais lêramos muito ou pouco, que víramos no cinema e na TV, mas sobretudo em fotografias nas revistas e jornais (e até mesmo em livros escolares) e que nos deixaram de boca aberta como se estivéssemos todo esse tempo no dentista (salvo seja!).
Vou-vos dizer qual o trajecto seguido:
Porto – Madrid – Barcelona – Andorra – Lyon – Genève – Zurich – Innsbruck – Garmisch – Ludwigschafen – Frankfurt – Koln – Amsterdam – Brussels – Paris – Bordeaux – Burgos – Porto.
Estas foram as terrinhas onde pernoitamos. Mas paramos, ou simplesmente atravessamos, outras. Munchen, por exemplo.
(optei por escrever o nome das cidades na língua original – removendo os tremas, que não sei como escrever – para meter ainda mais nojo!).
O curso tinha mais de setenta alunos. Dos que não fizeram a viagem, muitos se vieram a arrepender após ouvirem toda a panóplia de aventuras e desventuras que os ufanos excursionistas narraram.
O custo foi baixíssimo, porque os organizadores foram exímios (tosse, muita tosse) em arranjar dinheiro: quer com publicidade no livro de curso, quer com ajudas do ministério da Educação, quer ainda com a valiosa colaboração do DAAD, organismo dum ministério alemão que tinha como função apoiar estas iniciativas com o objectivo de promover aquele país.
Também visitamos umas empresas: a BASF, a Bayer, a Lurgi e a Foxboro.
Mas que era isto comparado com a neve em Andorra e na Áustria, com os lagos da Suiça, com as cervejas na Alemanha ou o Crazy Horse de Paris?
Peanuts!
E que tal? Roídinhos de inveja? Pois tem mesmo razão para isso!
Ainda hoje, quando se encontram colegas que partilharam a viagem, fazem-lhe sempre uma alusão, por mais curta que seja.
- Então quando é que vamos repetir a viagem de curso?
- Por mim começava já hoje!
E mais vos digo: se um dia chegasse a primeiro-ministro, haveria de dar mais um feriado aos portugueses; o dia 11 de Março (mas não por causa do golpe do Vasco Gonçalves e seus amigos).
Não posso deixar de realçar que toda a malta se portou impecavelmente, nomeadamente num ponto que costuma ser o mais complicado de cumprir: a comparência sempre à hora marcada para as partidas. Mesmo que os mancebos estivessem a morrer de sono ou as senhoras (que eram dezassete, metade da troupe) não tivessem a maquilhagem nos trinques.
Devido à crise académica de Coimbra de 69, alguns dos felizardos não se falavam (uns tinham feito greve aos exames, outros não). Mas no final já eram todos amigos outra vez.
E hoje fico-me por aqui.
A propósito! Que tal uma excursãozita destas, agora que se aproximam as férias?
Vão consultando as agências de viagem!
Sábado, 7 de Maio de 2005
O que penso do ensino básico
Comecei a escrever um comentário no blog “Fábulas” da Salta-pocinhas e a certa altura verifiquei que me tinha entusiasmado e escrevera muito mais do que tinha pensado inicialmente.
E também que acabara por expressar, de forma sucinta mas relativamente correcta, o meu pensamento essencial em relação ao ensino básico, que é a caixa de Pandora do nosso sistema escolar, neste momento e na minha opinião. Mas a responsabilidade não pertence aos professores (apetecia-me dizer: professoras). É dos responsáveis políticos. Dos governantes. E sobretudo de pseudo-pedagogos que parece que gostam de tratar as nossas criancinhas como cobaias.
Por isso resolvi transcrevê-lo para aqui. Com alguns ajustes.
Ao lerem o texto que se segue, não pensem que advogo o retorno às origens (acho que ainda não fossilizei).
Tão-somente que alguns princípios essenciais deveriam ser revistos à luz do que exponho.
Após este longo intróito, eis o comentário que resolvi transpor para aqui:
Nos anos 50, época em que fiz a primária de acordo com os cânones do salazarismo, havia turmas só de manhã ou só de tarde (pelo menos na minha escola).
Aprendia-se tudo e mais alguma coisa. Memorizava-se imenso. Claro! Naquelas idades a memória é fabulosa. Muitas coisas não eram percebidas nessa altura, mas sê-lo-iam mais tarde, nas mais variadas circunstâncias.
Mas também se aprendia a raciocinar. Fazíamos problemas que eu próprio, mais tarde, me perguntava como tinha conseguido resolver.
A criatividade era tão grande que desenvolvê-la não era muito importante. Orientá-la, isso sim.
Na 3ª classe já havia um exame. Fácil. Treino para o ano seguinte.
Na 4ª classe havia aulas de manhã, mas de tarde íamos quasi todos para casa da professora, todos os dias, das 2 às 7, para sermos bem “puxados”. E depois tínhamos o exame da 4ª classe, e ainda o de admissão aos liceus ou escolas técnicas. Penso que ambos a nível nacional. Que me conste, nunca nenhum de nós ficou marado ou traumatizado ou morreu de fadiga. Alguns chumbavam. A quantos eu vi que um ou dois chumbos fizeram bem! Deu-lhes tempo de amadurecimento e acabaram por se tornar dos melhores alunos.
Ah...e ainda apanhávamos reguadas, canadas e puxões de orelha.
Em suma: Faziam-nos aquilo que acho que não se faz hoje.
Obrigavam-nos a usar a cabeça, assim desenvolvendo as várias funções intelectuais.
Preparavam-nos para a vida, criando-nos dificuldades que resultavam em maior sentido de responsabilidade
Instruíam-nos, fornecendo conhecimento fundamental e geral.
E até nos complementavam a educação doméstica!
E ainda tínhamos a catequese ao domingo (coisa horrorosa!).
Actualmente, parece-me que tratam as criancinhas como "biblots".
E os alunos de hoje até são mais desenvoltos que os de há cinquenta anos. Acho eu!
A escola actual não cumpre bem o seu papel: desenvolver a mente, instruir e responsabilizar.
Agora, por favor, contem até dez antes de me chamar reaccionário! É que não o sou!
Mas sei que naquele tempo havia também algumas coisas mais correctas que hoje.
E se há coisa em que a 3ª República tem falhado estrondosamente é na Educação.
Não será verdade?
Maldito póquer!
Não sou, nem nunca fui, apreciador dos chamados jogos de mesa.
Reconheço que podem ser um bom entretenimento e, mais do que isso, um bom exercício mental.
Penso mesmo que o xadrez é o único jogo em que o factor sorte não existe. É puramente intelectual ou cerebral ou mental ou racional ou o que lhe quiserem chamar.
Em miúdo ainda joguei alguma coisa, com uns tios, nomeadamente a sueca e outros cujo nome não me recordo. E, curiosamente, com cartas tendo os desenhos usados em Espanha. Bem mais sugestivos, por sinal.
Como adolescente joguei póquer ao tostão. Mas foi sol de pouca dura.
Na tropa, em Angola, aprendi a mexer as pedras no xadrez.
E foi tudo.
De facto, não gosto! Não me perguntem porquê, pois não sei. Deve ser genético. O meu pai também nunca jogava.
Fazendo uma inflexão no discurso, lembro-me de ter lido um conhecido livro de Dostoievsky, “O jogador”, que abordava os problemas psicológicos e comportamentais de um viciado no jogo. Mas pouco mais recordo. Acho que, se tiver oportunidade, ainda o lerei de novo, um dia.
Vem isto a propósito de um antigo colega do liceu, o Zé das Iscas, tipo inteligente e de apurado sentido de humor, alto e sempre com um sorriso no rosto que, desde novo, se habituou a jogar póquer com um grupo de amigos. Faziam-no à noite, em casa de um ou de outro. Eram casas independentes, grandes o que permitia que eles estivessem razoavelmente acobertados dos olhares mais ou menos vigilantes dos pais ou donos das habitações.
E o hábito foi-se tornando vício para alguns. O Zé, ganhador habitual, foi dos que se deixou apanhar.
Mais tarde vim a saber que casara e tinha duas filhas. Não chegou a tirar nenhum curso superior mas tinha um bom emprego. E estava lançado para criar uma empresa própria.
Cheguei a encontrá-lo uma vez, curiosamente no funeral do pai de um amigo comum, teríamos trinta e poucos anos. Estava como sempre: sorridente e mordaz.
Passados dois ou três meses, encontro um velho colega, que me atira:
- Sabes quem morreu?
- Sei lá! – respondi.
- Foi o Zé! O Zé das Iscas! – anunciou o meu amigo.
- Não me digas! O Zé das Iscas morreu? Como foi isso? – retorqui, naturalmente espantado.
- Suicidou-se!
- Oh pá! Até estou zonzo! – fiz uma pausa e continuei – Estive com ele há pouco tempo e estava porreiro. Mas o que é que aconteceu?
- Oh pá! Segundo dizem foi por causa de dívidas de jogo. Deu um tiro na cabeça – concluiu o portador da má nova.
E fora, de facto.
Pela minha parte só posso dizer, descansa em paz, Zé!
Provavelmente alguns de vós conhecereis algum outro Zé que tenha sido vítima do vício do jogo.
Mas há muitos outros, viciados, que não chegam a esse extremo, mas tem que viver de forma bem complicada, na corda bamba, diria eu.
Acho que é caso para mudar o nome à peça:
De "Maldita cocaína!" para "Maldito póquer!".
Terça-feira, 3 de Maio de 2005
Camurço!
O meu pai tinha três irmãos.
Um mais velho, Manuel de seu nome, e dois mais novos, Gilberto e António, sendo este o benjamim.
Já todos faleceram. O último foi o António que morreu no verão passado com 78 anos.
António (ou o tio Tone, como lhe chamava) era o bem disposto do grupo.
Sempre bem humorado, dizer piadas era com ele. Falava pelos cotovelos. E tinha um descaramento, uma total ausência de timidez, que deixava os irmãos muitas vezes embaraçados. Mas não era inconveniente. Tinha o sentido das proporções.
Foi casado, depois viúvo, mas não teve filhos. Meu pai, que nem sempre estava disposto a aturar tanta irreverência, dizia muitas vezes em tom de censura paternal:
- Se tivesses a responsabilidade de sustentar e educar dois filhos, como eu, não andavas sempre com essa boa disposição.
Mas não deixava de lhe achar piada!
Pois o meu tio António também era um portista ferrenho.
E, nomeadamente nos anos 60, muitas vezes ía com o mano Fernando (quero dizer, o meu pai) comigo e com a minha irmã para as bancadas do já desaparecido Estádio das Antas para ver o Porto jogar.
Como vivíamos bem pertinho, chegávamos cedo e sentávamo-nos (ou colocávamos umas almofadinhas) nos degraus de cimento que constituíam a bancada. Havia uns grupinhos que íam para a mesma zona e conversávamos uns com os outros. E não só sobre futebol.
Bom! Há uma correcção a fazer: o meu tio normalmente chegava mais tarde, mas o irmão marcava-lhe o lugar. E quantas vezes já estava a bancada cheia, as pessoas a cobiçarem o lugar do tio Tone, e o meu pai a desabafar:
- Qualquer dia deixo de lhe marcar lugar! Ainda tenho alguma discussão por lhe estar a guardar a almofada. Que raio de homem! É sempre o mesmo!
Mas o António nunca faltava. E mal nos via, com o seu potente vozeirão, característica bem distintiva, berrava:
- Ó Fernando! Já cheguei!
ou
- Ó irmão! Já cá estou!
- Agora põe-se aos berros! Parece que não teve educação! – resmungava o discreto mano Fernando.
Começado o jogo (não sei se já assistiram ao vivo a um jogo de futebol) lá vinham as palmas, os assobios, os incitamentos, os apupos, os impropérios. Uma delícia para um sociólogo. E não só! Minha irmã deleitava-se a apreciar o comportamento da multidão. Era o grande prazer dela.
E os árbitros?
Bom! É bem conhecido que são sempre o mau da fita. Quando o pessoal da bancada achava que ele tinha prejudicado o Porto, parte dele levantava-se e aqueles conhecidos nomes em vernáculo ecoavam durante um pequeno intervalo de tempo.
Claro que o tio Tone ajudava à festa!
Mas, de vez em quando, resolvia fazer o seu solo.
Solo? Sim, solo!
Eu explico!
Quando a multidão vociferava palavrões contra o homem do apito e seus auxiliares (os bandeirinhas, como se chamavam na época), o nosso protagonista mantinha-se impávido e sereno.
Mas quando o bruaá amainava, ele levantava-se e bradava na sua voz de trovão:
- Camurso!
E era ver centenas ou mesmo milhares de cabecinhas a voltar-se para o ponto donde partira o berro.
Quando achava que tinha auditório suficiente, explicava alto e bom som:
- Camurso quer dizer 50% camelo e 50% urso!
E sentava-se calmamente com um irreprimível ar de gozo e perante a gargalhada geral!
Ainda hoje, um velho amigo que algumas vezes assistiu à cena, se refere ao tio como: “o teu tio camurso”.
Segunda-feira, 2 de Maio de 2005
A última viagem (epílogo)
No dia 31 de Março passado escrevi aqui que, uma querida tia, velhinha de 92 anos, estava às portas da morte.
Mas, como lutadora que fora durante toda a vida, ainda durante um mês travou o último combate.
Tinha de perder, já se sabia, mas venceu uma infecção renal. Ganhou a batalha mas perdeu a guerra.
Ontem.
E hoje lá estive, em Vila Praia de Âncora, a acompanhá-la na última viagem.
Mas não podia ter ficado em melhor companhia, a minha tia Bela.
Ficou junto de meu pai e de minha mãe.