Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Sábado, 18 de Junho de 2005
O cortador de carnes verdes
“Um dia vos falarei das minhas aventuras como comandante do Destacamento de Marinha do Cuando. Bom…o destacamento eram trezes homens, incluindo eu. E mais uma lancha de desembarque pequena. Mas que grande tropa eu ia comandar!”.
Foi assim que terminei o texto que publiquei aqui, no primeiro dia de Junho deste ano, com o título:
Sobrevoando a savana

Estávamos no final de 1974.
O destacamento era constituído pelo comandante, um sargento, um cabo, cinco marinheiros e cinco grumetes.
Sabem o que distingue um marinheiro de um grumete?
O primeiro é o que fica aprovado no curso de uma das muitas especialidades existentes na Armada. O grumete é o que chumba.
Aprendam que eu não duro sempre!
Os dois meses que passei no Rivungo foram dos mais originais que se podem viver.
Esta povoação do Cuando-Cubango, situada nas margens do rio Cuando, tinha duas ruas. Dispostas em L. A maior era paralela ao rio, e teria uns cem metros. O quartel ficava situado na extremidade do L mais afastada da rua mais pequena, que devia ter cinquenta. Ambas eram largas e em terra batida; a mais curta tinha mesmo separador central.
O nosso poiso era constituído por uma pequena construção em tijolo rebocado. Aí ficavam meia dúzia de divisões, sendo uma delas o meu quarto. O sargento e o cabo também aí tinham umas instalações tão pobres como a minha.

Havia ainda uma segunda construção relativamente sólida onde dormiam os outros dez bravos.
Um coberto onde um assalariado autóctone, o João Jacare cozinhava.
Um outro onde estava a mesa para se tomarem as refeições e havia dois frigoríficos a petróleo.
Tínhamos um galinheiro e uma pocilga.
Uma torre de vigia em madeira.

A lancha de desembarque (não que andássemos a treinar para invadir a Normandia, mas porque tendo fundo chato permitia navegar no estreito rio que tinha muitos bancos de areia) e, ainda, dois jeeps.
No aglomerado havia também um pequeno quartel do Exército (cerca de trinta homens, todos angolanos, dos quais só o alferes e dois furriéis eram brancos), a Administração de Posto, um pequeno hospital (que nunca funcionou), uma mini esquadra da Polícia com quatro agentes, a casa onde vivia o Sr. Lebre, mulato que administrava a localidade, a casa dos dois Pides, a do Camassango, um sujeito que era o responsável pela “investigação agrária” (o rapaz tinha um gira-discos com um som pior que horroroso, mas era com a sua música que fazíamos os bailes nocturnos duas ou três vezes por semana, com música africana, pois claro, senão as raparigas íam embora), a casa dos dois enfermeiros, negros e beberrões, e acho que não me esqueci de nada.
Uma coisa importante. Havia luz eléctrica. Água e saneamento é que nem pensar!
O resto eram cubatas feitas de terra seca com cobertura de folhas de uma árvore de que não sei o nome.
Nunca soube exactamente quantas pessoas ali viviam. Mas deviam ser muito mais de um milhar.
O avião que para lá me transportara, todas as semanas levava o correio, o jornal Expresso (um luxo onde eu lia as novidades da revolução) e a comida que só dava para quatro dias.
Para comer nos outros três era preciso ir para a savana caçar. E que boa carne saboreei! Até javali comi, qual Obélix!
Uma vez por mês, vinha pela picada um camião com as bebidas. Calhavam duas cervejas e um refrigerante a cada um, por dia. Alguns bebiam tudo numa semana, ou menos. Depois, tinham que se saciar com água tratada em filtros porosos ou compravam as bebidas engarrafadas aos que tinham espírito mais comercial.

Depois desta fastidiosa tentativa de vos explicar o que era o Rivungo, vou-vos falar do Lima.
Era um dos grumetes, natural do Minho, e que fora empregado num talho. Cortador de carnes verdes, portanto. Quando a falta de comida ou o insucesso nas caçadas exigiam que se matassem uns frangos ou uns leitões da nossa pecuária, era ele quem se encarregava de dar a facada letal e fazer o trabalho de talhante. E era impecável nessa função. Elemento imprescindível, portanto.
Uma manhã, entrava eu com as minhas calças de bombazina castanhas, sapatilhas em bota e T-shirt preta (nunca andávamos fardados, pois aquilo era uma tropa muito especial) na edificação onde ficavam os meus aposentos, e vi o Lima estendido no chão e outro dos nossos a dar-lhe bofetadas na cara.
Perante tal cena, engrossei a voz para ficar mais comandante e gritei:
- Mas que merda é esta? Larga imediatamente o rapaz!
O moço, cujo nome não recordo, olhou para mim com um ar assustado e disse:
- Ó senhor tenente! Eu não lhe estou a bater. Foi ele que desmaiou e estou a tentar acordá-lo.
Imediatamente comecei a ajudá-lo em tão prestimosa tarefa dando uns tabefes no Lima.
Ao cabo de um ou dois minutos o rapaz começou a voltar a si.
Mandei o outro buscar um copo com água (era preciso poupar as outras bebidas para momentos mais solenes) e, enquanto o valente minhoto se recompunha, perguntei ao socorrista:
- Mas porque é que ele desmaiou?
- Porque se picou num dedo e quando viu sangue, caiu redondo.
Eu não queria acreditar.
- Estás a gozar comigo? – disse um tanto agastado – então ele mata porcos e galinhas e desmaia por ver uma pintinha de sangue no dedo?
E foi o próprio Lima que me explicou:
- É verdade, senhor tenente. Ver o sangue dos outros não me faz impressão nenhuma, mas se vejo o meu, nem que seja uma coisinha de nada, não aguento e desmaio.
Fiquei varado. Nunca tinha imaginado que tal pudesse suceder. Mas era mesmo assim.
As pessoas são mesmo bizarras, não são?


publicado por António às 15:19
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