Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Hesitei bastante sobre se deveria escrever e exibir este texto.
Tem a ver com os meus antepassados e, se eles fossem vivos, provavelmente não gostariam de ter alguns aspectos da sua vida expostos aos olhos de todos.
Mas, acontecimentos recentes vieram ajudar-me a tomar uma decisão.
As pessoas e os nomes aqui referidos são absolutamente verídicos.
O que vou contar tem a ver com um dos ramos da minha família. O paterno.
Desde muito novo que encontrei grandes reservas em meu pai, Fernando, seus irmãos Manuel, Gilberto e António e ainda em minha avó e mãe deles Maria Luíza (e utilizo a grafia que constava no seu bilhete de identidade), para falarem da sua vida passada bem como dos seus outros parentes. Posso acrescentar que já todos faleceram.
Maria Luíza chamava-se, de seu nome completo, Maria Luíza Castilho Dias. E o nome do meu pai e dos três tios que referi tinham como apelidos Castilho Dias, também.
Um dia, ainda jovem, estava a manusear o bilhete de identidade do meu progenitor e verifiquei que era omisso em relação ao nome do meu avô. Sabia que ele era Américo e aquilo intrigou-me. Perguntei qual a causa daquela omissão. O meu pai deu uma desculpa esfarrapada qualquer. Só muito mais tarde, e não sei a que propósito, ele me desvendou, finalmente, alguns dos segredos do passado. Mas só alguns! Poucos!
O seu progenitor e meu avô, Américo Pereira, pianista profissional e filho de um compositor e também pianista portuense de nome Miguel Ângelo Pereira (este já eu conhecia; era muito falado lá em casa), casara com uma senhora cujo nome nunca soube. Tiveram vários filhos. Mas Américo, que era um homem sedutor e mulherengo, quando a mulher e alguns filhos foram infectados pela tuberculose, nos primórdios do sec. XX, iniciou uma ligação amorosa com a sua cunhada mais nova que, segundo vários depoimentos, fotografias que vi e por muito ter convivido com ela (faleceu em 1991 com noventa e sete anos de idade), era mulher de grande beleza. Era Maria Luíza, a minha querida avó Mimi e por este nome todos os netos a chamavam.
O envolvimento entre Américo, que na altura tinha pouco mais de quarenta anos, e Maria Luíza, que tinha dezanove, teve como primeiro contratempo uma gravidez. Quando a família da minha avó soube da situação, a pobre rapariga foi expulsa de casa, aliás de acordo com os critérios morais e sociais vigentes na época. E foi recolhida, não sei por quem, em Vila do Conde onde nasceu o meu tio Manuel.
Acabaram por ir viver juntos para uma vivenda na zona da Arrábida (casa que eu ainda conheci) tendo nascido ali os filhos Fernando e Gilberto.
Mas o meu avô era um homem muito ausente devido aos constantes compromissos profissionais que tinha, muitos dos quais no Brasil onde passava longos períodos.
E foi protelando, não sei se o casamento pois desconheço quando a sua primeira e legítima mulher faleceu, mas a assunção oficial da paternidade dos rapazinhos.
E isso nunca viria a acontecer pois entretanto faleceu no Rio de Janeiro, durante uma das tournées, com cinquenta e dois anos de idade. A minha avó, além dos três filhos criança, ficou ainda com um no ventre, o António, que foi o último a desaparecer de todos os personagens que referi, em Julho de 2004.
Como não eram pessoas de grande riqueza, os dois mais velhos, Manuel que já estudava no liceu e o meu pai que só tinha ainda concluído a terceira classe (tinha nove anos) foram lançados no mundo do trabalho. Gilberto foi educado por uns padrinhos mas acabou interno no asilo do Terço. Minha avó ficou a cuidar da casa e do bebé que entretanto nascera, em 1929, ano do falecimento do pai de seus filhos. Mais tarde arranjou um emprego que conservou até se reformar.
E pouco mais soube deste ramo da família. Conheci ainda uma irmã da minha avó, de nome Alzira e os seus dois filhos: Jaime e Lili (o nome correcto não lembro agora).
Nunca conheci e mal ouvi falar dos meios-irmãos de meu pai pois, se alguns morreram com a tísica, outros sobreviveram.
Torna-se agora mais compreensível o silêncio sobre muitos factos que, talvez por acordo entre eles, resolveram levar para a tumba.
E também se torna mais compreensível a minha dúvida em escrever e divulgar este texto.
Já fiz uma breve alusão ao meu bisavô, pai de Américo, a figura dessa linha familiar mais falada e muitas vezes referida, ainda que sem grandes pormenores. Era, sem dúvida, o nome maior e mais reverenciado:
Miguel Ângelo Pereira.
Dele diz o dicionário enciclopédico Lello Universal:
“PEREIRA (Miguel Ângelo), compositor português nascido em Barcelinhos (1843 – 1901), autor das óperas Eurico, Zaida, Avalanche, de música sinfónica, etc.”.
E um longo artigo, assinado por Eurico Thomaz de Lima e cuja primeira parte foi publicada no Diário do Norte de doze de Março de 1958 e a segunda no número de vinte e dois do mesmo mês, titulava:
“Miguel Ângelo Pereira – O maior músico português da segunda metade do sec. IXX morreu na pobreza e louco”. (afinal eu tenho a quem sair, estão a ver?).
A noção que eu sempre tive era a de que todo o espólio artístico do meu bisavô havia sido perdido. Cheguei, já homem, a escrever para o Círculo de Cultura Musical a pedir informações sobre o artista, mas nem resposta tive.
E o assunto estaria encerrado se o acaso não resolvesse fazer-nos umas das surpresas que lhe são tão habituais.
Já este blog havia sido criado quando, a trinta de Maio do ano corrente, recebi um e-mail de um sujeito que assinava José A. Nele me pedia para lhe telefonar ou dar o meu número de telefone. Vivia em Lisboa.
Liguei-lhe.
E que me disse ele?
Que, andando a ler alguns blogs, viu um comentário meu num deles (tenho quasi a certeza que era o “Guerrilhas” da Guevara) no qual que me referia ao meu bisavô Miguel Ângelo Pereira como tendo nascido em Barcelinhos, na margem esquerda do rio Cávado, mesmo junto à ponte velha que liga aquela freguesia à cidade de Barcelos. A Guevara que me perdoe a indiscrição mas eu escrevi isso porque ela é uma barcelense.
E disse-me mais, o senhor:
Que a sua sogra, senhora de setenta e seis anos de idade, também era bisneta do compositor. E que tinha algumas pautas com músicas do meu bisavô. E tinha mesmo pequenas gravações áudio de alguns excertos de peças dele.
Rejubilei, como devem calcular!
E ainda mais: que ele fora casado com uma senhora de quem tivera cinco filhos. Por ordem decrescente da idade, Artur, Rafael, Raul, Virgílio e Américo. Todos com o apelido Pereira. Todos músicos profissionais.
Uma importante informação que a senhora, descendente de Artur, me deu (pois no dia seguinte falei com ela pelo telefone) foi a de que uma tal Dr.ª Ana Maria Liberal a tinha contactado pois fizera um mestrado sobre a música na cidade do Porto na segunda metade do século XIX e tinha ficado fascinada com o talento e também com a importância que Miguel Ângelo havia tido na época. Completou dizendo que a tal doutora e musicóloga estava a doutorar-se e tinha escolhido como tema exactamente este compositor agora quasi esquecido.
Tendo obtido da bisneta de Miguel Ângelo o seu contacto telefónico, também para a doutora liguei. Ficou muito grata pois lhe faltavam elementos sobre o filho mais novo, o meu avô Américo, e eu estive a fornecer-lhe informações sobretudo ligadas aos seus descendestes.
Teceu os maiores elogios sobre o artista que, repetiu, a fascinava pela sua personalidade e talento. Afirmou mesmo que eu me podia orgulhar de ter um ascendente com uma enorme e decisiva influência no riquíssimo meio musical portuense dessa época. E confirmou que, embora muito do espólio artístico não tivesse paradeiro conhecido, havia ainda material, quer em papel quer em gravação (feita muito mais tarde, obviamente, e com intérpretes que desconheço).
Contou-me que a loucura teria sido originada pelo facto de a ópera Eurico, que ele considerava a sua obra-prima, ter tido pouco êxito, o que o deixou muito abalado e mais tarde o convertera em doente mental (provavelmente hoje, com um bom anti-depressivo, ficaria curado em poucos meses).
Disse-me ainda que o meu avô Américo não só fora um conceituado pianista como também compositor de reconhecidos méritos.
Como a tese de doutoramento terá de ficar pronta até Outubro ou Novembro do ano em curso, combinamos que depois me ofereceria um exemplar.
Consequentemente, vou aguardando que o trabalho fique concluído para, finalmente, descobrir muitos dos mistérios que, para mim, ainda estão por decifrar.
Depois, e em função do que vier mencionado nesse documento que considero já de grande valor, definirei o que fazer, nomeadamente para reabilitar a memória do meu ancestral.
Nos dias seguintes falei com a minha irmã e as minhas primas que ficaram também entusiasmadíssimas, como era de calcular. E também querem um exemplar da tese do doutoramento, claro!
Penso que a decisão de aqui divulgar os factos que tanto incomodaram os meus antepassados foi a mais correcta. Que me perdoem os falecidos. Mas estamos no campo da investigação histórica e, além disso, gostaria muito que o nome de Miguel Ângelo Pereira passasse a constar da galeria dos grandes compositores portugueses pois, ao que parece, o foi.
Lá para o final do ano espero voltar a este assunto.
Realmente, a vida reserva-nos cada surpresa!
Só para terminar:
Já repararam que se o meu avô tivesse perfilhado os filhos o meu nome seria, por exemplo, António Dias Pereira?
A título de nota de rodapé, devo dizer que dos descendentes de Américo nenhum mostrou aptidões para a música. Nomeadamente eu, a minha irmã e o meu filho estudamos piano mas, como se costuma dizer, não dávamos uma para a caixa.
Tenho pena!