Irreverência, humor, criatividade, non-sense, ousadia, experimentalismo. Mas tudo pode aparecer aqui. E as coisas sérias também. O futuro dirá se valeu a pena...ou melhor seria ter estado quietinho, preso por uma camisa de forças!
Domingo, 17 de Julho de 2005
Cena de caça no Bambangando
Vem esta narrativa na sequência de outras duas que já estão colocadas neste blog:
“Sobrevoando a savana” e “O cortador de carnes verdes”, postadas respectivamente ao primeiro e ao décimo oitavo dias do mês de Junho deste ano de 2005.
A acção decorre nessa terra do fim do mundo, o Rivungo, onde eu era o comandante do Destacamento de Marinha do Cuando, composto por mais doze marinheiros de água doce que, bem longe do mar, navegavam no estertor da guerra colonial, nos finais de 1974.
A minha ida para lá fora motivada pelo mês de férias do comandante efectivo. Quando pedi para me dizerem quando regressava ao seu lugar o meu colega, o Comando Naval de Angola respondeu-me que já não ia. E que eu podia desactivar a unidade e ir embora com o pessoal e o material que fosse transportável por camião sobre picada. Devido a várias vicissitudes, ainda lá fiquei outro mês.
E mesmo este pequeno período de oito semanas foi suficiente para ficar meio apanhado da mona.

Como já anteriormente referi, a comida que recebíamos semanalmente só chegava para alimentar aqueles jovens esfomeados durante quatro dias. Para suprir as carências para o resto da semana, ia-se caçar.
Para transporte usava-se um dos jipes, na parte mais recuada do qual foi soldada uma estrutura em ferro, mais elevada, configurando um banco de três lugares devidamente almofadados para proteger os rabinhos.
Como arma, as metralhadoras G3.
Havia dois homens que eram habituais nas caçadas: O cabo José Castro e o artilheiro João Correia. O primeiro como condutor da viatura e o segundo como atirador.
Este era o homem mais antigo no Destacamento. Marinheiro de artilharia, estatura média, magro, loiro, fumador inveterado e com os dentes estragados apesar da sua juventude, depois de dois anos de comissão no Rivungo pediu para lá continuar pelo que já ia no terceiro ou quarto. Era o mais respeitado pelos outros, depois dos graduados. Estava sempre a trabalhar e era pau para toda a colher. Vivia numa cubata com a indígena mais rica da localidade, pois o pai era o dono da única loja existente. Vendia de tudo. Um verdadeiro supermercado, à escala da terrinha, claro. E a filha era a negra mais bem vestida das redondezas pois o papá lhe facultava os melhores e mais berrantes panos para confeccionar a roupa. O Correia tinha-lhe verdadeiro amor. Era o único que cumpria horário, pois fora das horas de serviço ia para sua casa e dedicava-se inteiramente à mulher e, entre outras coisas, ensinava-a a ler, escrever e contar. Tinha o comportamento de um verdadeiro marido e chefe de família embora não tivessem filhos. E, quando retiramos definitivamente aquelas paragens, foi pungente vê-los a chorar que nem crianças pois ambos sabiam que nunca mais se encontrariam. Amor lindo!
Além dos dois, normalmente iam mais três homens para as caçadas semanais que eram em locais relativamente perto e demoravam pouco tempo graças à pontaria do Correia.
Apanhavam caça ligeira, normalmente coelhos, ao início da noite, usando a técnica do encandeamento dos animais por um potente holofote. Chamavam-lhe “farolinar”. E bicho parado era bicho morto.
De vez em quando, fazia-se uma caçada mais longe para apanhar caça mais grossa.
Foi precisamente para eu poder tomar parte numa dessas caçadas, que se combinou para determinado dia uma ida à zona de Bambangando (o nome foi-me transmitido oralmente, nunca o vi escrito pelo que, se não for exactamente assim, espero ser perdoado).
Além de mim, do cabo Zé, e do João, iria o Nunes, grumete de tronco largo e musculado, barba rara e um bigodinho ridículo, que trabalhava bastante na confecção dos alimentos e tomava conta da bicharada doméstica do destacamento. Incluía um pequeno jacaré, cães, um macaquinho e umas cobritas.
Como a zona para onde íamos era afastada o suficiente para nos perdermos (mas nela havia abundância de animais de carne saborosa), ia connosco um nativo para servir de guia. Também levávamos machados para dar início à amanha das bestas abatidas.
E assim, bem cedo, numa manhã soalheira de finais de Outubro (não esqueçam que o Rivungo fica no hemisfério sul), estávamos prontos para uma aventura completamente inédita para mim.
Quando perguntei se o material de comunicações estava na viatura, disseram-me que não costumavam levar:
- Mas isso muda já hoje! – disse eu, e ordenei ao homem das comunicações, o Neto, que preparasse um transmissor-receptor para ir connosco. E também combinei com ele que de duas em duas horas nós comunicaríamos em determinada frequência. Se não recebesse nada, deveria tentar contactar-nos.
O lanche não tinha, naturalmente, sido esquecido. E muito menos a água. Íamos para uma zona mais afastada do rio e, portanto, mais quente. A savana pura!
Toda a malta do destacamento se veio despedir de nós. Fiz duas ou três recomendações ao sargento Gomes que assumia, interinamente, o comando da unidade.
E lá partimos à aventura.
Tudo corria bem. Eu estava entusiasmado e ia tirando umas fotos. Parámos ainda em duas pequenas povoações para descansar os cuzinhos dos solavancos. A certa altura, já o sol ia alto (acho que os relógios marcavam entre as dez e as dez e meia), o Correia disse:
- Sr. Zé! Pare o jipe e o motor!
E logo após os meus tímpanos vibraram com um tiro e, alguns segundos depois, com outro.
- Acho que matei um javali! – disse o João.
O cabo arrancou e fomos na direcção indicada pelo atirador.
- Está ali! – disse o Nunes.
E estava, de facto, um animal caído. Ainda mexia. O guia pegou num machado e deu-lhe o golpe de misericórdia.
- Lá vou eu comer carninha de javali! – falei para os meus botões.
Após algum tempo de descanso sob umas árvores, pois o calor já era fortíssimo, arrancamos para tentar apanhar mais uma peça.
Diga-se que, nestas caçadas maiores, distribuíamos parte da colheita por alguns (no total eram muito poucos) brancos de outros aldeamentos que os meus homens conheciam. E, chegados ao Rivungo, também vários eram os contemplados. Mas a recíproca também era verdadeira.
Com o jeep novamente a galgar terreno sob um sol cada vez mais forte, nova situação de tiro se propiciou mas, desta vez, falhamos.
No entanto, pouco depois, um disparo certeiro do artilheiro atingiu um caixote. Foi naquelas paragens que ouvi falar pela primeira vez naquele nome. Depois de morto e de o observar, pareceu-me uma espécie de antílope, mais corpulento.
E ainda caçamos um segundo javali.
- Vamos apanhar mais um e depois regressamos – disse o cabo Zé.
Seria perto da uma hora. Sol a pique, novo caixote à vista correndo veloz, pé a fundo no acelerador, um grande solavanco, um estrondo, um jipe parado, um motor fumegante.
O bloco estava partido. Não poderíamos sair dali sem ajuda de outros.
- Vamos puxar o carro para aquela zona com árvores. Aqui não aguentamos o sol e o calor – disse o cabo.
- Depois comunicamos com o Neto. A próxima hora prevista é às duas. Mas pode ser que ele esteja por perto e nos escute – disse eu.
E todos em cuecas ou calção de banho puxamos, com uma forte corda que fazia parte da carga habitual, o jipe para uma zona de sombra. Foram pouco menos de duzentos metros.
Reparámos, então, que no meio da vegetação havia uma grande chana. Também foi lá que ouvi pela primeira vez falar nesta palavra. É um charco, maior ou menor, de águas quasi estagnadas, onde os animais vão beber.
Mas estávamos a coberto dos raios solares. E isso era muito importante.
Ainda antes de comer a merenda contactamos o Destacamento. Ninguém respondeu. Deviam estar a almoçar.
Começamos a refeição mas, quando eram duas horas, ouvi a voz do nosso telegrafista depois de o ter chamado.
Contei o que tinha acontecido, indiquei o local onde estávamos (o guia foi precioso para esta informação) e demos instruções sobre quem deveria ser contactado para nos vir buscar. Era um dos brancos que vivia numa das terrinhas por onde passáramos e que tinha um camião.
E fomos esperando.
Duas, três, quatro, cinco horas da tarde.
A água acabou. A sede era imensa. Só havia uma solução: beber daquela água da chana, apesar de estar cheia de bichinhos lá dentro e uns mosquitos enormes caminhando sobre ela.
- O que não mata, engorda! – sentenciei.
E enchemos os jerricans filtrando a água com um lenço. Até hoje não tive qualquer problema por ter bebido daquele líquido certamente inquinado. Os organismos mais jovens tem boas defesas mas, apesar de tudo, tivemos sorte.
E a espera continuou.
Seis, sete, oito, nove horas. Noite.
Os contactos com o Neto foram frequentes.
Já perto das dez, iluminados por uma fogueira que além de clarear poderia servir para afugentar algum animal menos desejado, ouvimos o ruído de um motor. Pouco depois vimos a luz de faróis. Finalmente salvos!
O jipe foi carregado para cima do camião e após algum tempo de viagem chegamos ao primeiro dos povoados.
Saciamo-nos com água fresquinha. E cerveja.
Entretanto, alguém notou que os animais mortos já estavam a deitar mau cheiro. Como ainda faltava algum tempo para chegarmos ao destino, decidimos deixá-los ali mesmo para depois serem enterrados. Lá se foi o resultado da grande caçada. E a carninha de javali...que chatice!
Chegados ao Rivungo e feitas as despedidas dos nossos salvadores, contamos a aventura rapidamente. A fadiga era muita. Fomos tomar banho e dormir.
No dia seguinte, a narrativa foi calmamente detalhada.
E disse ao Neto:
- Ora vês a importância de se ter um meio de comunicar e saber quando ele pode fazer falta?
- Tem razão, Sr. Tenente – anuiu, abanando simultaneamente a cabeça em sinal de aprovação.
O Neto era um tipo baixote, cabelo grande e muito encaracolado, um patusco bigodinho. Era considerado meio tolo pelos outros. Mas era bom como técnico de comunicações.
Um dia, mais tarde, fui encontrá-lo na sua minúscula cabine aninhado, calções em baixo, e o pirilau metido dentro de uma tigela com um líquido aquoso.
- Que se passa, pá? – perguntei.
Embaraçado, confessou-me que ele e o Xana, um dos grumetes mais mandriões do grupo, e que era fumador de liamba, segundo me disseram, depois de tanto ouvirem dizer que se fossem circuncisados teriam muito mais prazer nas relações sexuais, haviam recorrido ao serviço de um dos dois enfermeiros negros e beberrões da povoação que, com uma lâmina de barbear, lhes tinha cortado o prepúcio.
Resultado: uma infecção em cada um deles e cura demorada, pois a medicação existente não era a mais adequada.
Daí o demolhar do membro viril (que, naquela fase, não o devia ser muito) numa solução de borato de sódio.

De facto, muitas vezes aquilo parecia mais um manicómio que um quartel militar (mesmo em miniatura).
Mas, a mais interessante, enriquecedora e louca experiência ainda estava para acontecer.
Um dia virá aqui poisar. Até já tem título:
“Diplomacia no Rivungo”


publicado por António às 14:34
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2 comentários:
De Gisela a 20 de Agosto de 2009 às 01:22
Vim dar com esta história

Fiquei arrepiada!!! :)) ...

Abraço


De António a 20 de Agosto de 2009 às 09:00
Olá, querida Gisela!
Eu não uso este blog.
Os trextos mais antigos devem ser vistos no endereço:
http://eusoulouco.blogspot.com

Obrigado pelo comentário.

Beijinhos


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